CRIAÇÃO DA FEDERAÇÃO DE RELIGIÃO DE MATRIZES AFRICANAS DO ACRE 05 DE SETEMBRO DE 2015.
Marco conceitual para Povos Tradicionais de Matrizes Africanas.
Abaixo disponibilizamos o texto base que vai subsidiar a nossa proposta de alterações do PL 7447. Leiam, reflitam, façam sugestões e durante o prazo de 60 dias poderão enviar suas contribuições para o e-mail povostmaconceito@gmail.com
O texto: Povos Tradicionais de Matrizes Africanas
Introdução
Buscando uma estratégia para o diálogo sobre as políticas públicas para o segmento da população negra conhecido no Brasil como "afro-religiosos", remetemos ao decreto 6040/2007, que estabelece a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais, cujas definições e objetivos respondem às pautas colocadas pelas lideranças dos chamados "terreiros".1
O artigo 3º, inciso I, do referido Decreto define como Povos e Comunidades Tradicionais os "grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam território e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição".
Em todo o território tradicional, incluindo os chamados "terreiros" ou "roças", são vivenciados valores de organização coletiva e tradições, incluindo a relação com o universo sagrado oriundo de diferentes contextos culturais africanos. 0 reducionismo das práticas tradicionais de matrizes africanas aos aspectos estritamente religiosos, nega por antinomia, a dimensão histórica e cultural dos territórios negros constituídos no Brasil, e, ainda nos coloca diante de uma armadilha, a do Estado Laico, que na prática ainda está longe de ser real, mas o É quando está em "risco" a hegemonia cultural eurocêntrica no país.
Ademais, concordamos plenamente que o Estado deva SER LAICO garantindo sua liberdade de existirem todos os credos religiosos, mas não mantendo relações privilegiadas com nenhum deles. Entretanto, é dever do Estado promover e valorizar as diversas tradições mantenedoras do processo civilizatório brasileiro.
Foto de Luiz Alves
A diversidade das Tradições de Matriz africana no Brasil
Como é já sabido, no processo do tráfico negreiro, foram trazidos, para o Brasil, diversos povos de diversas regiões do continente africano, e mais densamente da África Ocidental e da África Subsaariana. Os historiadores afirmam que a vinda forçada de populações africanas se deu em três grandes ciclos: o primeiro, denominado Ciclo da Guiné (Século XV) trazendo pessoas da região da Costa da Guiné, expressão usual para designar toda costa ocidental da África, até porque Portugal e seus aliados ainda não tinham instalado entrepostos e fortes de apoio ao tráfico até então limitado do ponto vista numérico; Ciclo de Angola (Século XVII) quando ocorreu o maior comércio negreiro, trazendo milhões de pessoas, na condição de escravos para o chamado Novo Mundo e, em especial para o Brasil; Nesse ciclo são representativos do povo banto, o Angola e o Congo, embora se tenha por certo que subgrupos estiveram igualmente submetidos ao comércio negreiros, assim como outros da Contra Costa, provenientes, sobretudo da região de Moçambique. Ciclo da Costa da Mina, que se entendeu até 1815, quando o tráfico entrou na ilegalidade até 1851. Está centrado no Golfo de Benim, também denominado Costa dos Escravos, onde se localizam atualmente Togo, Benim (antigo Daomé) e Nigéria. E nesses períodos chegaram ao Brasil os Fongbe (os falantes da língua Fon) os aqui reconhecidos indistintamente por jêjes (mundobim, Savalu, mahin ) do Benin e do Togo, Os iorubás da Nigéria, denominados genericamente de nagôs e outros grupos
As três tradições que constituirão os Povos Tradicionais de Matrizes Africanas, vieram, principalmente, nos dois últimos ciclos: Os povos de língua banta, vindos no segundo ciclo, os povos de língua ewé-fon, no terceiro ciclo ao lados dos de língua ioruba.
Cada um desses povos era dividido em diversas comunidades, vez que a própria idéia de Nação é moderna e ocidental. Não havia uma Nação de língua banta, ewé-fon ou iorubá, mas diversas comunidades organizadas em cidades, com suas práticas e culturas tradicionais, suas histórias, ritos, organizações políticas diversas. (FLOR DO NASCIMENTO, 2012). Foi aqui na diáspora que essas comunidades recorreram ao conceito de nação, amparadas nas tradições transplantadas do continente africano, mas que a despeito das práticas aculturativas e as reações das classes dominantes que sonhavam um Brasil a partir do modelo ocidental, estabeleceram definitivamente no solo brasileiro indelével sentido de pertença e de identidade étnico-histórico-cultural com as matrizes africanas que lhe dão permanente sustentação através do laço comum das tradições.
Aqui, a noção de tradição está afirmada para fazer notar que há um variado conjunto de experiências culturais em África que foi atravessado pela experiência da colonização, de modo que há também culturas coloniais em solo africano. E não é com essas experiências culturais coloniais/modernas que estabeleceremos nosso diálogo, mas com as experiências que resistem se modificam, se rearticulam, apesar da colonização. Tradicional, portanto, não é apenas o antigo, mas aquilo que se manteve em movimento, conservou-se em mudanças, diante das forças coloniais que construíram a África, tal como, de modo geral, a conhecemos hoje (MUDIMBE, 1988).
Os diversos povos africanos utilizam a noção de tradição bastante específica. E esta mesma noção já tem conexão forte com os processos formadores. Tradição significaria a transmissão do que é essencial, sendo “o conhecimento fundamental, básico do que é a existência, o universo e as pautas centrais para a política e a ética” (INIESTA, 2010, p. 16), sem, no entanto, serem estáticas, pois salvaguardam eixos fundamentais da experiência e modificam e inovam as fórmulas de adaptação ao espaço e ao tempo.
Um dos principais problemas que surgem para compreender o que seja “tradicional” no continente africano é exatamente a questão colocada sobre a existência de algum tipo de unidade cultural no vasto continente africano (SOW, 1977, p. 12).
Pensadores tradicionais africanos insistem na inexistência de uma unidade fundamental nas culturas africanas. Entretanto, essa inexistência é posicional:
Ainda que exista uma única África, não há uma cultura tradicional que valha para toda ela. Ainda assim, existiriam, realmente, culturas tradicionais na África ao sul do Saara? A resposta, certamente, é sim (HAMPÂTÉ BÂ, 1975, p. 35).
A inexistência de uma unidade fundamental, não impede daquilo que Aguessy chamou de “proprium africanum”, que tem a ver com o modo como os diversos povos do continente africano, tradicionalmente, têm articulado suas concepções de mundo (AGUESSY, 1977, p. 96). E aqui vemos que esse modo próprio
não apaga a diversidade e não deveria entravar seu reconhecimento; e essa diversidade, que se inscreve na natureza das coisas e no itinerário histórico dos povos, não poderia constituir um objetivo em si e, ainda menos, substituir-se à simbiose para a qual se tende (SOW, 1977, p. 21).
E é exatamente em função desse proprium, que se definem as tradições africanas que, em sua diversidade, seguem sendo africanas diferentemente das tradições produzidas no ocidente. Um dos elementos do proprium, e, talvez, sua característica fundamental é a oralidade. A oralidade não se torna central pelo desconhecimento da escrita, mas porque esta tem uma importância menos relevante, não captando o movimento do pensar, do saber, do querer, das forças vitais (AGUESSY, 1977, p. 108).
No esteio da oralidade, então, diversas práticas de pensamento, que se ancoram nas tradições que os povos africanos construíram em suas histórias. E é importante notar que pensar essas práticas no plural, deve manter o cuidado de levar em consideração os modos africanos de lidar com a diversidade e com a unidade, advindas da própria oralidade.
O ocidente tem formas muito particulares de pensar a diversidade e a unidade. E devemos evitar esse modo colonial de pensar – seja a unidade, seja a diversidade – para refletirmos acerca das tradições africanas que chegam a nossos povos tradicionais de matrizes africanas.
Os tratos coloniais do ocidente de lidar com a unidade tendem a pensá-la em termos de homogeneidade, de contraposição ao múltiplo. Isso coloca a relação com a unidade em esquemas de poder, em hierarquias opressivas. Tudo aquilo que não se adequa ao padrão homogêneo – que se verte em hegemônico – não pode ocupar lugares de dignidade no pensamento. O unitário, o uno, o mesmo, o contínuo é, para essa perspectiva, superior ao diverso, múltiplo, outro, descontínuo.
Dessa maneira, a mesma estratégia colonial do ocidente pensa a diversidade como elemento desmobilizador, desarticulador, enfraquecedor, inferiorizador.
Sobre esse aspecto, encontramos o diagnóstico em um encontro ocorrido em Abomey, atual Benin, em 1974, quando pensadores reconhecidos e jovens de diversos países africanos e de outros lugares do mundo discutiam sobre as tradições culturais no continente negro; no relatório desse encontro encontramos a seguinte afirmação:
alguns observadores estrangeiros não hesitam em ver nas diversidades um fator essencial de divisão. Eles têm mantido o hábito de apresentar aos africanos a multiplicidade de suas culturas como um espantalho, um obstáculo fundamental à sua reaproximação. Esses observadores estão, sobremaneira, preocupados quando não em difamar as culturas africanas, ao menos de marginalizá-las, isso quando não falam em subculturas. Eles têm deliberadamente insistido sobre as diferenças e os antagonismos, com o objetivo evidente de dividir os povos africanos. Eles, muitas vezes, têm sido capazes de impor seu próprio modo de pensar e de viver, em uma palavra, sua cultura (UNESCO, 1975, p. 101).
Assim vemos que os “estrangeiros” (os ocidentais) usam o discurso da diversidade como modo de marginalização. Mas se os próprios mestres tradicionais afirmam indelevelmente a diversidade das culturas tradicionais, como nos posicionarmos sobre isso?
Aqui, o apelo às próprias tradições pode nos auxiliar. O pensador malinês Amadou Hampâté Bâ (2010) nos recorda que a oralidade com sua estratégia fluida e rigorosa, ao mesmo tempo, mantém a tradição viva, em um movimento constante, ora apelando para significantes estáveis, ora abrindo espaços para a criação de novos sentidos e interpretações, múltiplos, plurais.
Isso se dá, porque as estratégias de lidar com a unidade e com a multiplicidade nas tradições africanas são diametralmente opostas às do ocidente. Enquanto o ocidente busca a unificação para padronizar e estabelecer hierarquias de poder, normalmente opressivas, e lê na diversidade o enfraquecimento e o empobrecimento, as tradições africanas usam, estrategicamente, tanto a unidade como a diversidade com o intuito de integrar e criar. Para as tradições africanas, há momentos no qual a unidade deve ser evocada, na tentativa de escapar das armadilhas do disperso e do desunido, que empobrecem e há momentos no qual a diversidade deve ser evocada quando a homogeneização, armadilha do mesmo e do único, empobrece. E isso me faz entender um ditado banto – originário de Cabinda – : “não há floresta boa com um tipo só de árvore”.
Nesse cenário, é importante saber que tanto a unidade quanto a diversidade estão a nosso dispor, na medida em que buscamos amparo nas tradições africanas. O que não podemos fazer é vê-las como opostas, como ardilosamente nos propõe as estratégias coloniais do ocidente.
As tradições entre povos tradicionais de matrizes africanas
Uma vez que sabemos que foram diversos os povos que foram trazidos para cá e que alguns deles constituíram os Povos Tradicionais de Matrizes Africanas e, sabendo também, que esses povos não se constituem em uma unidade homogênea, mas em uma diversidade integradora, passamos a descrever os três povos tradicionais que em sua maior prevalência encontramos no território brasileiro.
Os povos tradicionais de matriz africana de língua banta
Entre as populações que vieram nos três ciclos do tráfico negreiro, o mais antigo a constituir os povos tradicionais de matriz africana, estão os que vieram das regiões do continente africano que falam as línguas bantas. Esses povos trouxeram significativas contribuições para a construção da cultura nacional, como o samba, o maracatu, a capoeira, a congada, além de várias contribuições léxico-vocabulares que enriqueceram a língua portuguesa e, com os falares indígenas, fizeram-na definitivamente brasileira.
A influência dos povos de língua banta está presente nos candomblés de Angola ou Congo/Angola, na Macumba carioca, na Umbanda, nos cultos a caboclos e encantados no Tambor de Mina, no Terecô, nas vertentes Cabindas do Batuque, na Quimbanda, em parte do culto à Jurema Sagrada, e em diversas outras manifestações tradicionais que tem no culto à ancestralidade sua fundamentação central.
Além da oralidade, há alguns eixos centrais que organizam os modos de pensar, crer e viver dos povos tradicionais de matriz africana de língua banta: As relações com a natureza, com a ancestralidade e com a comunidade. É importante frisar que toda e qualquer cultura estabelece relações com a natureza, com a ancestralidade e com a comunidade. O que marca a diferença entre os povos de língua banta é exatamente o modo da relação, que se mostra de maneira articulada, integrada, contínua e desarticulada de binarismos ou dualismos.
a) As relações com a natureza:
Para os povos tradicionais de língua banta, a natureza não é apenas o meio ambiente que nos cerca. A ausência de dualismos, que instauraria a dualidade de mundos, como há no pensamento ocidental, faz com que a não haja uma separação entre natureza e cultura ou natureza e história. Para a perspectiva dos povos de língua banta, tudo é natureza, é história, é cultura que se diferenciam apenas na relação que a comunidade estabelece com eles. Desta forma, a distinção entre natureza e história é contingencial, localizada e dinâmica.
O corpo é a marca dessa dificuldade de separar a natureza da história. O corpo é ao mesmo tempo uma materialidade marcada por uma continuidade imemorial com o início do mundo das coisas, tendo carne, ossos, sangue, que partilham com o restante dos objetos seu caráter material e, também, histórico, na medida em que, decisões, os valores coletivos que constituem a comunidade e, mais tenuemente, as famílias, marcam um caráter histórico deste mesmo corpo. Um corpo é sempre um corpo físico em uma comunidade (OLIVEIRA, 2006).
A natureza funciona através do movimento de um princípio fundamental presente em todas as coisas do universo. Chamado nos candomblés Congo/Angola de Nguzu e nos territórios africanos de língua banta de Ntu, este princípio é a base de toda a natureza, estando em constante dinâmica e transformação. Isso faz com que a cosmovisão banta não pense a natureza estática em contraposição à história dinâmica. Tudo é dinâmico na natureza para a perspectiva dos povos tradicionais de língua banta (TEMPELS, 1965; ALTUNA, 1985).
É natureza tem um lugar tão fundamental que, para os povos tradicionais de língua banta, as divindades assumem a forma de forças da natureza. Os inquices, para utilizar uma das muitas denominações que recebem essas divindades, são forças naturais e se vinculam com atividades humanas (a tecnologia, a prática da cura, a produção do conhecimento, a pesca, a justiça etc.). Desta maneira, a relação que se estabelece com a natureza é de integração, cuidado, de reverência, implantando a imagem de que destruir a natureza é destruir a própria vida em sua plenitude.
b) As relações com a ancestralidade:
Para os povos tradicionais de língua banta a ancestralidade é, além da relação com os parentes vivos e mortos, a própria relação com a história e a política. A família, estrutura geral, coletiva e fundamental da organização social dos povos de língua banta é também a imagem da história de quem somos filhos. Experiência relacional, a ancestralidade liga as diversas pessoas das comunidades, inclui, organiza, sempre na perspectiva da multiplicidade.
A ancestralidade é o motor da história, alicerce da memória e que nos recorda que somos sempre filhos de uma família que tem várias origens e que se projetará em diversos caminhos no futuro. Temos parentes ancestrais vivos que estão entre nós e vivos que já não mais vemos com nossa visão orgânica. Somos ou seremos ancestrais de alguém, de modo que a ancestralidade é a dinâmica de organização dos modos de viver.
Por isso, a senioridade é um valor fundamental. Respeitam-se os mais velhos porque já foram mais novos e para que nós possamos deixar o exemplo para que os mais novos tornem-se mais velhos. Respeitam-se os mais novos, porque eles podem (e devem) tornar-se mais velhos, porque eles são o devir que vem, ao passo que os mais velhos são o devir que são. A ancestralidade movimenta-se, assim, entre o passado e o futuro, para educar e formar o presente.
c) As relações com a comunidade:
A comunidade é a forma de organização que articula o princípio fundamental vital (que tem um caráter eminentemente relacional) e a própria ancestralidade. Grande família, a comunidade tem primazia sobre o individual. Os indivíduos só se tornam pessoas ao entrarem nas comunidades (ALTUNA, 1985). Não há pessoas sem comunidade, mas também não há comunidade sem pessoas. A interligação entre as pessoas, advinda do princípio vital e da lógica familiar da ancestralidade dá o caráter central da noção de comunidade.
Nos povos africanos de língua banta encontramos várias maneiras de expressar aquilo que em língua Xhosa (uma das muitas línguas bantas) ficou conhecido como ubuntu. O ubuntu é a caracterização da humanidade dos humanos em função de seu caráter relacional. Só é possível ser humano ao fazer parte de uma comunidade. Esta comunidade é formada pelos vivos, pelos que já viveram e pelos que já viverão. A própria natureza é parte dessa comunidade, sendo ela também detentora de vontade e sujeito de direitos. Ubuntu, ao mesmo tempo, nos conclama para a responsabilidade individual e coletiva de todos para com todos, uma vez que a humanidade de cada pessoa depende da humanidade de todas as outras e das relações que se estabeleça com o restante da natureza.
A relação com a comunidade para os povos tradicionais falantes de língua banta é eminentemente solidária. É necessário que estejamos sempre atentos para com os outros, pois nossa humanidade depende disso. E é preciso tomar uma posição, fazer algo para que o sofrimento do outro seja reduzido ou extirpado (RAMOSE, 1999). O sofrimento de um é o sofrimento de todos nesse contexto. Este é um dos motivos que a própria noção de humanidade dos humanos é intercambiável com a de comunidade. Por isso, popularizou-se a tradução de ubuntu como “sou porque somos”, ou ainda, “eu só existo porque nós existimos” (MALOMALO, 2010, p. 20, grifos nossos).
As visões de mundo dos povos tradicionais de matriz africana de língua banta se mostra a partir desses elementos articulados entre si. E muitas vezes, por isso, são vistas pelo ocidente racionalista/dualista como um sistema de pensamento folclórico ou apenas místico e sem rigor. Certamente, para uma tradição (a ocidental) – que só consegue pensar em termos duais, opondo a razão ao mito, à fantasia, ao místico – esse tipo de visão de mundo não pode ser outra coisa além de uma manifestação do misticismo, sendo, em virtude disso, inferior. Qualquer visualização mais cuidadosa da experiência da tradição de matriz africana de língua banta mostrará que isso não passa de uma visão estereotipada, racista e distorcida.
Os povos tradicionais de matriz africana de língua ewé-fon
Os povos tradicionais de matriz africana de língua iorubá
Os Iorubás de Nigéria, na sua grande extensão populacional, onde se incluem diferentes subgrupos interligados pelo tronco comum da língua “nagô”, pela sua geopolítica e, mais que tudo, pelo profundo sentido das tradições que lhes dão motivações de grandeza e natureza, como pressupostos de sua afirmação como povo, a despeito do processo de colonização inglesa que tentou amordaçá-los se lhes tolhendo até mesmo a noção de pessoa, são, ao lado de tantas outras civilizações, representativos maiores de práticas defensivas de suas tradicionalidades, Trouxeram para a diáspora a capacidade de luta pelo bem comum, inserção das tradições sobre as quais se estabelece todo o sistema de poder estruturado quase sempre no sentido da senhoridade como apanágio do saber acumulado, da experiência de vida absorvida nos textos litúrgico dos cultos aos orixás e eguns que estruturam a visão de mundo do povo iorubano.
Outros conceitos
Assim sendo, no processo de elaboração do I Plano de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, no diálogo que mantivemos com o governo e outras lideranças de matriz africana, desde dezembro de 2011, algumas expressões e conceitos foram se materializando e estão presentes no documento. Seguem algumas:
Povos Tradicionais de Matriz Africana - referindo ao conjunto dos povos africanos para cá transladados, e às suas diversas variações e denominações originárias dos processos históricos diferenciados em cada parte do país, na relação com o meio ambiente e com os povos locais;
Comunidades Tradicionais de Matriz Africana - Territórios ou Casas Tradicionais - constituídos pelos africanos e sua descendência no Brasil, no processo de insurgência e resistência ao escravismo e ao racismo, a partir da cosmovisão e ancestralidade africanas, e da relação desta com as populações locais e com o meio ambiente. Representam o contínuo civilizatório africano no Brasil, constituindo territórios próprios caracterizados pela vivência comunitária, pelo acolhimento e pela prestação de serviços à comunidade;
Autoridades Tradicionais de Matriz Africana - são os mais velhos, investidos da autoridade que a ancestralidade lhes confere;
Lideranças Tradicionais de Matriz Africana - demais lideranças constituídas dentro da hierarquia própria das casas tradicionais;
Intolerância Religiosa - expressão que não dá conta do grau de violência que incide sobre os territórios e tradições de matriz africana. Esta violência constitui a face mais perversa do racismo, por ser a negação de qualquer valoração positiva às tradições africanas, daí serem demonizadas e / ou reduzidas em sua dimensão real. Tolerância não é o que queremos, exigimos sim respeito, dignidade e liberdade para SER e EXISTIR;
Expressões Culturais de Matriz Africana - Trata-se das muitas manifestações culturais originárias das matrizes africanas trazidas para o Brasil: reizado, congada, moçambique, capoeira, maracatu, afoxé, blocos afro, dança afro, etc.
Referências
AGUESSY, Honorat. Visões e percepções tradicionais. In: BALOGUN, Ola et al. Introdução à cultura africana. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 95-136.
ALTUNA, Raúl Ruiz de Asúa. Cultura Tradicional Banto. Luanda: SAP, 1985.
FLOR DO NASCIMENTO, wanderson. Jindengue – Omo kékeré: Notas desde alguns olhares africanos sobre infância e formação. In: XAVIER, Ingrid Müller; KOHAN, Walter Omar (orgs.). Filosofar: aprender e ensinar. Belo Horizonte: Autêntica, p. 41-51, 2012.
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. Cultures Traditionnelles et Transformations Sociales. In: UNESCO. La Jeunesse et les valeurs culturelles africaines. Paris: Unesco, p. 35-49, 1975.
____. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (ed.). História Geral da África I. Metodologia e Pré-história da África. Brasília: Unesco, p. 167-212, 2010.
INIESTA, Ferran. El pensamiento tradicional africano. Madrid: Catarata; Casa África, 2010.
MALOMALO, Bas’Ilele. “Eu só existo porque nós existimos”: a ética Ubuntu. IHU – Revista do Instituto Humanitas – Unisinos. São Leopoldo, n. 353, 2010, p. 19-22.
MUDIMBE, V.Y. The Invention of Africa. Gnosis, Philosophy and Order of Knowledge. Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 1988.
OLIVEIRA, Eduardo David. Cosmovisão Africana no Brasil. Elementos para uma filosofia afrodescendente. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2006.
RAMOSE, Mogobe B. African Philosophy Through Ubuntu. Harare: Mond Books, 1999.
SOW, Alpha Ibrahima. Prolegômenos. In: BALOGUN, Ola et al. Introdução à cultura africana. Lisboa: Edições 70, p. 11-35, 1977.
TEMPELS, Placide. La philosophie bantoue. Paris: Présence Africaine, 1965.
UNESCO. La Jeunesse et les valeurs culturelles africaines (Documents de la Réunion régionale d'Abomey, Dahomey – 2-7 décembre 1974). Paris: Unesco, 1975.
VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo. Do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos Séculos XVII e XIX. Salvador: Currupio, 2002.
VIANNA FILHO, Luiz. O negro na Bahia. Um ensaio clássico sobre a escravidão. Salvador: EdUFBA, 2008.
Postado por Etetuba Etetuba às 18:39 Nenhum comentário:
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O texto: Povos Tradicionais de Matrizes Africanas
Introdução
Buscando uma estratégia para o diálogo sobre as políticas públicas para o segmento da população negra conhecido no Brasil como "afro-religiosos", remetemos ao decreto 6040/2007, que estabelece a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais, cujas definições e objetivos respondem às pautas colocadas pelas lideranças dos chamados "terreiros".1
O artigo 3º, inciso I, do referido Decreto define como Povos e Comunidades Tradicionais os "grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam território e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição".
Em todo o território tradicional, incluindo os chamados "terreiros" ou "roças", são vivenciados valores de organização coletiva e tradições, incluindo a relação com o universo sagrado oriundo de diferentes contextos culturais africanos. 0 reducionismo das práticas tradicionais de matrizes africanas aos aspectos estritamente religiosos, nega por antinomia, a dimensão histórica e cultural dos territórios negros constituídos no Brasil, e, ainda nos coloca diante de uma armadilha, a do Estado Laico, que na prática ainda está longe de ser real, mas o É quando está em "risco" a hegemonia cultural eurocêntrica no país.
Ademais, concordamos plenamente que o Estado deva SER LAICO garantindo sua liberdade de existirem todos os credos religiosos, mas não mantendo relações privilegiadas com nenhum deles. Entretanto, é dever do Estado promover e valorizar as diversas tradições mantenedoras do processo civilizatório brasileiro.
Foto de Luiz Alves
A diversidade das Tradições de Matriz africana no Brasil
Como é já sabido, no processo do tráfico negreiro, foram trazidos, para o Brasil, diversos povos de diversas regiões do continente africano, e mais densamente da África Ocidental e da África Subsaariana. Os historiadores afirmam que a vinda forçada de populações africanas se deu em três grandes ciclos: o primeiro, denominado Ciclo da Guiné (Século XV) trazendo pessoas da região da Costa da Guiné, expressão usual para designar toda costa ocidental da África, até porque Portugal e seus aliados ainda não tinham instalado entrepostos e fortes de apoio ao tráfico até então limitado do ponto vista numérico; Ciclo de Angola (Século XVII) quando ocorreu o maior comércio negreiro, trazendo milhões de pessoas, na condição de escravos para o chamado Novo Mundo e, em especial para o Brasil; Nesse ciclo são representativos do povo banto, o Angola e o Congo, embora se tenha por certo que subgrupos estiveram igualmente submetidos ao comércio negreiros, assim como outros da Contra Costa, provenientes, sobretudo da região de Moçambique. Ciclo da Costa da Mina, que se entendeu até 1815, quando o tráfico entrou na ilegalidade até 1851. Está centrado no Golfo de Benim, também denominado Costa dos Escravos, onde se localizam atualmente Togo, Benim (antigo Daomé) e Nigéria. E nesses períodos chegaram ao Brasil os Fongbe (os falantes da língua Fon) os aqui reconhecidos indistintamente por jêjes (mundobim, Savalu, mahin ) do Benin e do Togo, Os iorubás da Nigéria, denominados genericamente de nagôs e outros grupos
As três tradições que constituirão os Povos Tradicionais de Matrizes Africanas, vieram, principalmente, nos dois últimos ciclos: Os povos de língua banta, vindos no segundo ciclo, os povos de língua ewé-fon, no terceiro ciclo ao lados dos de língua ioruba.
Cada um desses povos era dividido em diversas comunidades, vez que a própria idéia de Nação é moderna e ocidental. Não havia uma Nação de língua banta, ewé-fon ou iorubá, mas diversas comunidades organizadas em cidades, com suas práticas e culturas tradicionais, suas histórias, ritos, organizações políticas diversas. (FLOR DO NASCIMENTO, 2012). Foi aqui na diáspora que essas comunidades recorreram ao conceito de nação, amparadas nas tradições transplantadas do continente africano, mas que a despeito das práticas aculturativas e as reações das classes dominantes que sonhavam um Brasil a partir do modelo ocidental, estabeleceram definitivamente no solo brasileiro indelével sentido de pertença e de identidade étnico-histórico-cultural com as matrizes africanas que lhe dão permanente sustentação através do laço comum das tradições.
Aqui, a noção de tradição está afirmada para fazer notar que há um variado conjunto de experiências culturais em África que foi atravessado pela experiência da colonização, de modo que há também culturas coloniais em solo africano. E não é com essas experiências culturais coloniais/modernas que estabeleceremos nosso diálogo, mas com as experiências que resistem se modificam, se rearticulam, apesar da colonização. Tradicional, portanto, não é apenas o antigo, mas aquilo que se manteve em movimento, conservou-se em mudanças, diante das forças coloniais que construíram a África, tal como, de modo geral, a conhecemos hoje (MUDIMBE, 1988).
Os diversos povos africanos utilizam a noção de tradição bastante específica. E esta mesma noção já tem conexão forte com os processos formadores. Tradição significaria a transmissão do que é essencial, sendo “o conhecimento fundamental, básico do que é a existência, o universo e as pautas centrais para a política e a ética” (INIESTA, 2010, p. 16), sem, no entanto, serem estáticas, pois salvaguardam eixos fundamentais da experiência e modificam e inovam as fórmulas de adaptação ao espaço e ao tempo.
Um dos principais problemas que surgem para compreender o que seja “tradicional” no continente africano é exatamente a questão colocada sobre a existência de algum tipo de unidade cultural no vasto continente africano (SOW, 1977, p. 12).
Pensadores tradicionais africanos insistem na inexistência de uma unidade fundamental nas culturas africanas. Entretanto, essa inexistência é posicional:
Ainda que exista uma única África, não há uma cultura tradicional que valha para toda ela. Ainda assim, existiriam, realmente, culturas tradicionais na África ao sul do Saara? A resposta, certamente, é sim (HAMPÂTÉ BÂ, 1975, p. 35).
A inexistência de uma unidade fundamental, não impede daquilo que Aguessy chamou de “proprium africanum”, que tem a ver com o modo como os diversos povos do continente africano, tradicionalmente, têm articulado suas concepções de mundo (AGUESSY, 1977, p. 96). E aqui vemos que esse modo próprio
não apaga a diversidade e não deveria entravar seu reconhecimento; e essa diversidade, que se inscreve na natureza das coisas e no itinerário histórico dos povos, não poderia constituir um objetivo em si e, ainda menos, substituir-se à simbiose para a qual se tende (SOW, 1977, p. 21).
E é exatamente em função desse proprium, que se definem as tradições africanas que, em sua diversidade, seguem sendo africanas diferentemente das tradições produzidas no ocidente. Um dos elementos do proprium, e, talvez, sua característica fundamental é a oralidade. A oralidade não se torna central pelo desconhecimento da escrita, mas porque esta tem uma importância menos relevante, não captando o movimento do pensar, do saber, do querer, das forças vitais (AGUESSY, 1977, p. 108).
No esteio da oralidade, então, diversas práticas de pensamento, que se ancoram nas tradições que os povos africanos construíram em suas histórias. E é importante notar que pensar essas práticas no plural, deve manter o cuidado de levar em consideração os modos africanos de lidar com a diversidade e com a unidade, advindas da própria oralidade.
O ocidente tem formas muito particulares de pensar a diversidade e a unidade. E devemos evitar esse modo colonial de pensar – seja a unidade, seja a diversidade – para refletirmos acerca das tradições africanas que chegam a nossos povos tradicionais de matrizes africanas.
Os tratos coloniais do ocidente de lidar com a unidade tendem a pensá-la em termos de homogeneidade, de contraposição ao múltiplo. Isso coloca a relação com a unidade em esquemas de poder, em hierarquias opressivas. Tudo aquilo que não se adequa ao padrão homogêneo – que se verte em hegemônico – não pode ocupar lugares de dignidade no pensamento. O unitário, o uno, o mesmo, o contínuo é, para essa perspectiva, superior ao diverso, múltiplo, outro, descontínuo.
Dessa maneira, a mesma estratégia colonial do ocidente pensa a diversidade como elemento desmobilizador, desarticulador, enfraquecedor, inferiorizador.
Sobre esse aspecto, encontramos o diagnóstico em um encontro ocorrido em Abomey, atual Benin, em 1974, quando pensadores reconhecidos e jovens de diversos países africanos e de outros lugares do mundo discutiam sobre as tradições culturais no continente negro; no relatório desse encontro encontramos a seguinte afirmação:
alguns observadores estrangeiros não hesitam em ver nas diversidades um fator essencial de divisão. Eles têm mantido o hábito de apresentar aos africanos a multiplicidade de suas culturas como um espantalho, um obstáculo fundamental à sua reaproximação. Esses observadores estão, sobremaneira, preocupados quando não em difamar as culturas africanas, ao menos de marginalizá-las, isso quando não falam em subculturas. Eles têm deliberadamente insistido sobre as diferenças e os antagonismos, com o objetivo evidente de dividir os povos africanos. Eles, muitas vezes, têm sido capazes de impor seu próprio modo de pensar e de viver, em uma palavra, sua cultura (UNESCO, 1975, p. 101).
Assim vemos que os “estrangeiros” (os ocidentais) usam o discurso da diversidade como modo de marginalização. Mas se os próprios mestres tradicionais afirmam indelevelmente a diversidade das culturas tradicionais, como nos posicionarmos sobre isso?
Aqui, o apelo às próprias tradições pode nos auxiliar. O pensador malinês Amadou Hampâté Bâ (2010) nos recorda que a oralidade com sua estratégia fluida e rigorosa, ao mesmo tempo, mantém a tradição viva, em um movimento constante, ora apelando para significantes estáveis, ora abrindo espaços para a criação de novos sentidos e interpretações, múltiplos, plurais.
Isso se dá, porque as estratégias de lidar com a unidade e com a multiplicidade nas tradições africanas são diametralmente opostas às do ocidente. Enquanto o ocidente busca a unificação para padronizar e estabelecer hierarquias de poder, normalmente opressivas, e lê na diversidade o enfraquecimento e o empobrecimento, as tradições africanas usam, estrategicamente, tanto a unidade como a diversidade com o intuito de integrar e criar. Para as tradições africanas, há momentos no qual a unidade deve ser evocada, na tentativa de escapar das armadilhas do disperso e do desunido, que empobrecem e há momentos no qual a diversidade deve ser evocada quando a homogeneização, armadilha do mesmo e do único, empobrece. E isso me faz entender um ditado banto – originário de Cabinda – : “não há floresta boa com um tipo só de árvore”.
Nesse cenário, é importante saber que tanto a unidade quanto a diversidade estão a nosso dispor, na medida em que buscamos amparo nas tradições africanas. O que não podemos fazer é vê-las como opostas, como ardilosamente nos propõe as estratégias coloniais do ocidente.
As tradições entre povos tradicionais de matrizes africanas
Uma vez que sabemos que foram diversos os povos que foram trazidos para cá e que alguns deles constituíram os Povos Tradicionais de Matrizes Africanas e, sabendo também, que esses povos não se constituem em uma unidade homogênea, mas em uma diversidade integradora, passamos a descrever os três povos tradicionais que em sua maior prevalência encontramos no território brasileiro.
Os povos tradicionais de matriz africana de língua banta
Entre as populações que vieram nos três ciclos do tráfico negreiro, o mais antigo a constituir os povos tradicionais de matriz africana, estão os que vieram das regiões do continente africano que falam as línguas bantas. Esses povos trouxeram significativas contribuições para a construção da cultura nacional, como o samba, o maracatu, a capoeira, a congada, além de várias contribuições léxico-vocabulares que enriqueceram a língua portuguesa e, com os falares indígenas, fizeram-na definitivamente brasileira.
A influência dos povos de língua banta está presente nos candomblés de Angola ou Congo/Angola, na Macumba carioca, na Umbanda, nos cultos a caboclos e encantados no Tambor de Mina, no Terecô, nas vertentes Cabindas do Batuque, na Quimbanda, em parte do culto à Jurema Sagrada, e em diversas outras manifestações tradicionais que tem no culto à ancestralidade sua fundamentação central.
Além da oralidade, há alguns eixos centrais que organizam os modos de pensar, crer e viver dos povos tradicionais de matriz africana de língua banta: As relações com a natureza, com a ancestralidade e com a comunidade. É importante frisar que toda e qualquer cultura estabelece relações com a natureza, com a ancestralidade e com a comunidade. O que marca a diferença entre os povos de língua banta é exatamente o modo da relação, que se mostra de maneira articulada, integrada, contínua e desarticulada de binarismos ou dualismos.
a) As relações com a natureza:
Para os povos tradicionais de língua banta, a natureza não é apenas o meio ambiente que nos cerca. A ausência de dualismos, que instauraria a dualidade de mundos, como há no pensamento ocidental, faz com que a não haja uma separação entre natureza e cultura ou natureza e história. Para a perspectiva dos povos de língua banta, tudo é natureza, é história, é cultura que se diferenciam apenas na relação que a comunidade estabelece com eles. Desta forma, a distinção entre natureza e história é contingencial, localizada e dinâmica.
O corpo é a marca dessa dificuldade de separar a natureza da história. O corpo é ao mesmo tempo uma materialidade marcada por uma continuidade imemorial com o início do mundo das coisas, tendo carne, ossos, sangue, que partilham com o restante dos objetos seu caráter material e, também, histórico, na medida em que, decisões, os valores coletivos que constituem a comunidade e, mais tenuemente, as famílias, marcam um caráter histórico deste mesmo corpo. Um corpo é sempre um corpo físico em uma comunidade (OLIVEIRA, 2006).
A natureza funciona através do movimento de um princípio fundamental presente em todas as coisas do universo. Chamado nos candomblés Congo/Angola de Nguzu e nos territórios africanos de língua banta de Ntu, este princípio é a base de toda a natureza, estando em constante dinâmica e transformação. Isso faz com que a cosmovisão banta não pense a natureza estática em contraposição à história dinâmica. Tudo é dinâmico na natureza para a perspectiva dos povos tradicionais de língua banta (TEMPELS, 1965; ALTUNA, 1985).
É natureza tem um lugar tão fundamental que, para os povos tradicionais de língua banta, as divindades assumem a forma de forças da natureza. Os inquices, para utilizar uma das muitas denominações que recebem essas divindades, são forças naturais e se vinculam com atividades humanas (a tecnologia, a prática da cura, a produção do conhecimento, a pesca, a justiça etc.). Desta maneira, a relação que se estabelece com a natureza é de integração, cuidado, de reverência, implantando a imagem de que destruir a natureza é destruir a própria vida em sua plenitude.
b) As relações com a ancestralidade:
Para os povos tradicionais de língua banta a ancestralidade é, além da relação com os parentes vivos e mortos, a própria relação com a história e a política. A família, estrutura geral, coletiva e fundamental da organização social dos povos de língua banta é também a imagem da história de quem somos filhos. Experiência relacional, a ancestralidade liga as diversas pessoas das comunidades, inclui, organiza, sempre na perspectiva da multiplicidade.
A ancestralidade é o motor da história, alicerce da memória e que nos recorda que somos sempre filhos de uma família que tem várias origens e que se projetará em diversos caminhos no futuro. Temos parentes ancestrais vivos que estão entre nós e vivos que já não mais vemos com nossa visão orgânica. Somos ou seremos ancestrais de alguém, de modo que a ancestralidade é a dinâmica de organização dos modos de viver.
Por isso, a senioridade é um valor fundamental. Respeitam-se os mais velhos porque já foram mais novos e para que nós possamos deixar o exemplo para que os mais novos tornem-se mais velhos. Respeitam-se os mais novos, porque eles podem (e devem) tornar-se mais velhos, porque eles são o devir que vem, ao passo que os mais velhos são o devir que são. A ancestralidade movimenta-se, assim, entre o passado e o futuro, para educar e formar o presente.
c) As relações com a comunidade:
A comunidade é a forma de organização que articula o princípio fundamental vital (que tem um caráter eminentemente relacional) e a própria ancestralidade. Grande família, a comunidade tem primazia sobre o individual. Os indivíduos só se tornam pessoas ao entrarem nas comunidades (ALTUNA, 1985). Não há pessoas sem comunidade, mas também não há comunidade sem pessoas. A interligação entre as pessoas, advinda do princípio vital e da lógica familiar da ancestralidade dá o caráter central da noção de comunidade.
Nos povos africanos de língua banta encontramos várias maneiras de expressar aquilo que em língua Xhosa (uma das muitas línguas bantas) ficou conhecido como ubuntu. O ubuntu é a caracterização da humanidade dos humanos em função de seu caráter relacional. Só é possível ser humano ao fazer parte de uma comunidade. Esta comunidade é formada pelos vivos, pelos que já viveram e pelos que já viverão. A própria natureza é parte dessa comunidade, sendo ela também detentora de vontade e sujeito de direitos. Ubuntu, ao mesmo tempo, nos conclama para a responsabilidade individual e coletiva de todos para com todos, uma vez que a humanidade de cada pessoa depende da humanidade de todas as outras e das relações que se estabeleça com o restante da natureza.
A relação com a comunidade para os povos tradicionais falantes de língua banta é eminentemente solidária. É necessário que estejamos sempre atentos para com os outros, pois nossa humanidade depende disso. E é preciso tomar uma posição, fazer algo para que o sofrimento do outro seja reduzido ou extirpado (RAMOSE, 1999). O sofrimento de um é o sofrimento de todos nesse contexto. Este é um dos motivos que a própria noção de humanidade dos humanos é intercambiável com a de comunidade. Por isso, popularizou-se a tradução de ubuntu como “sou porque somos”, ou ainda, “eu só existo porque nós existimos” (MALOMALO, 2010, p. 20, grifos nossos).
As visões de mundo dos povos tradicionais de matriz africana de língua banta se mostra a partir desses elementos articulados entre si. E muitas vezes, por isso, são vistas pelo ocidente racionalista/dualista como um sistema de pensamento folclórico ou apenas místico e sem rigor. Certamente, para uma tradição (a ocidental) – que só consegue pensar em termos duais, opondo a razão ao mito, à fantasia, ao místico – esse tipo de visão de mundo não pode ser outra coisa além de uma manifestação do misticismo, sendo, em virtude disso, inferior. Qualquer visualização mais cuidadosa da experiência da tradição de matriz africana de língua banta mostrará que isso não passa de uma visão estereotipada, racista e distorcida.
Os povos tradicionais de matriz africana de língua ewé-fon
Os povos tradicionais de matriz africana de língua iorubá
Os Iorubás de Nigéria, na sua grande extensão populacional, onde se incluem diferentes subgrupos interligados pelo tronco comum da língua “nagô”, pela sua geopolítica e, mais que tudo, pelo profundo sentido das tradições que lhes dão motivações de grandeza e natureza, como pressupostos de sua afirmação como povo, a despeito do processo de colonização inglesa que tentou amordaçá-los se lhes tolhendo até mesmo a noção de pessoa, são, ao lado de tantas outras civilizações, representativos maiores de práticas defensivas de suas tradicionalidades, Trouxeram para a diáspora a capacidade de luta pelo bem comum, inserção das tradições sobre as quais se estabelece todo o sistema de poder estruturado quase sempre no sentido da senhoridade como apanágio do saber acumulado, da experiência de vida absorvida nos textos litúrgico dos cultos aos orixás e eguns que estruturam a visão de mundo do povo iorubano.
Outros conceitos
Assim sendo, no processo de elaboração do I Plano de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, no diálogo que mantivemos com o governo e outras lideranças de matriz africana, desde dezembro de 2011, algumas expressões e conceitos foram se materializando e estão presentes no documento. Seguem algumas:
Povos Tradicionais de Matriz Africana - referindo ao conjunto dos povos africanos para cá transladados, e às suas diversas variações e denominações originárias dos processos históricos diferenciados em cada parte do país, na relação com o meio ambiente e com os povos locais;
Comunidades Tradicionais de Matriz Africana - Territórios ou Casas Tradicionais - constituídos pelos africanos e sua descendência no Brasil, no processo de insurgência e resistência ao escravismo e ao racismo, a partir da cosmovisão e ancestralidade africanas, e da relação desta com as populações locais e com o meio ambiente. Representam o contínuo civilizatório africano no Brasil, constituindo territórios próprios caracterizados pela vivência comunitária, pelo acolhimento e pela prestação de serviços à comunidade;
Autoridades Tradicionais de Matriz Africana - são os mais velhos, investidos da autoridade que a ancestralidade lhes confere;
Lideranças Tradicionais de Matriz Africana - demais lideranças constituídas dentro da hierarquia própria das casas tradicionais;
Intolerância Religiosa - expressão que não dá conta do grau de violência que incide sobre os territórios e tradições de matriz africana. Esta violência constitui a face mais perversa do racismo, por ser a negação de qualquer valoração positiva às tradições africanas, daí serem demonizadas e / ou reduzidas em sua dimensão real. Tolerância não é o que queremos, exigimos sim respeito, dignidade e liberdade para SER e EXISTIR;
Expressões Culturais de Matriz Africana - Trata-se das muitas manifestações culturais originárias das matrizes africanas trazidas para o Brasil: reizado, congada, moçambique, capoeira, maracatu, afoxé, blocos afro, dança afro, etc.
Referências
AGUESSY, Honorat. Visões e percepções tradicionais. In: BALOGUN, Ola et al. Introdução à cultura africana. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 95-136.
ALTUNA, Raúl Ruiz de Asúa. Cultura Tradicional Banto. Luanda: SAP, 1985.
FLOR DO NASCIMENTO, wanderson. Jindengue – Omo kékeré: Notas desde alguns olhares africanos sobre infância e formação. In: XAVIER, Ingrid Müller; KOHAN, Walter Omar (orgs.). Filosofar: aprender e ensinar. Belo Horizonte: Autêntica, p. 41-51, 2012.
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. Cultures Traditionnelles et Transformations Sociales. In: UNESCO. La Jeunesse et les valeurs culturelles africaines. Paris: Unesco, p. 35-49, 1975.
____. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (ed.). História Geral da África I. Metodologia e Pré-história da África. Brasília: Unesco, p. 167-212, 2010.
INIESTA, Ferran. El pensamiento tradicional africano. Madrid: Catarata; Casa África, 2010.
MALOMALO, Bas’Ilele. “Eu só existo porque nós existimos”: a ética Ubuntu. IHU – Revista do Instituto Humanitas – Unisinos. São Leopoldo, n. 353, 2010, p. 19-22.
MUDIMBE, V.Y. The Invention of Africa. Gnosis, Philosophy and Order of Knowledge. Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 1988.
OLIVEIRA, Eduardo David. Cosmovisão Africana no Brasil. Elementos para uma filosofia afrodescendente. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2006.
RAMOSE, Mogobe B. African Philosophy Through Ubuntu. Harare: Mond Books, 1999.
SOW, Alpha Ibrahima. Prolegômenos. In: BALOGUN, Ola et al. Introdução à cultura africana. Lisboa: Edições 70, p. 11-35, 1977.
TEMPELS, Placide. La philosophie bantoue. Paris: Présence Africaine, 1965.
UNESCO. La Jeunesse et les valeurs culturelles africaines (Documents de la Réunion régionale d'Abomey, Dahomey – 2-7 décembre 1974). Paris: Unesco, 1975.
VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo. Do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos Séculos XVII e XIX. Salvador: Currupio, 2002.
VIANNA FILHO, Luiz. O negro na Bahia. Um ensaio clássico sobre a escravidão. Salvador: EdUFBA, 2008.
Postado por Etetuba Etetuba às 18:39 Nenhum comentário:
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