CRESCENDO
ENTRE ORIXÁS
Crianças que praticam candomblé sentem orgulho de sua religião, mas na escola sofrem preconceito, envergonham-se e dizem que são católicas
Crianças que praticam candomblé sentem orgulho de sua religião, mas na escola sofrem preconceito, envergonham-se e dizem que são católicas
Por
Stela Guedes Caputo* - redacao@fazendomedia.com
Aos
4 anos ele precisava de uma almofada para poder alcançar o atabaque.
Escondia a chupeta atrás das costas, vestia uma camisa branca e
colocava o colar de Xangô, orixá do fogo, da justiça e de quem é
filho. Ricardo Nery atualmente tem 18 anos, mas aos dois anos foi
"suspenso", ou seja, apontado ogan por Iansã no terreiro
de sua avó, Mãe Palmira de Iansã, o Ile Omo Oya Legi, em Mesquita.
Paula Esteves, do mesmo terreiro, tem 20 anos e foi iniciada aos 2
anos de idade, passando a ser conhecida como Paulinha de Xangô. Hoje
é iaebé,
ou "a mãe que toma conta da casa", importante função no
candomblé. Noam Moreira, 14 anos, é filho de Oxalá e ogan do Ile
Omiojuaro, em Miguel Couto. Michele, 15 anos e Alessandra dos Santos,
11, anos (os nomes dessas irmãs são fictícios*), são equedes
(cuidam dos orixás em terra), no Axé Opó Afonjá, em Coelho da
Rocha, todos na Baixada Fluminense, periferia do Rio de Janeiro. Em
toda comunidade-terreiro existem diversas crianças; a maioria é
levada pelos pais ou responsável e, assim como os adultos, muitas
são iniciadas, desempenham funções importantes, ocupam cargos na
hierarquia do culto e manifestam orgulho de sua fé.
O
Orixá decide - "Aprendi
olhando", dizia Ricardo Nery ainda aos quatro anos, e que sempre
bateu com incrível habilidade vários tipos de atabaques. Ricardo
também ensina que é o orixá quem determina a função que a pessoa
terá na religião. "Ou ele mostra no jogo de búzios ou desce
no terreiro, durante uma festa para dizer seu destino no culto. O meu
foi ser ogan. Não viro no santo. Tenho de conhecer os toques do
candomblé para chamar os orixás. São muitos toques, mas nunca tive
dificuldade", revela. E nunca teve mesmo. "Já aos dois
anos ele tocava até adormecer e, quando alguém o levava para a
cama, despertava e voltava correndo", confirma a orgulhosa avó,
Mãe Palmira de Iansã. Amigos desde crianças, Ricardo e Paulinha de
Xangô cresceram no mesmo terreiro e contam que a diversão predileta
de ambos quando pequenos era "brincar de macumba". Já
Paulinha "vira" no santo, desde os 14 anos. "Quando eu
era pequena não virava porque tinha medo de morrer se deixasse Xangô
entrar em mim. Depois abri espaço para ele e perdi o medo. Hoje,
quando incorporo, ando pelo terreiro e Xangô também anda. Danço
eu, dança Xangô, mas sei que é Xangô dentro de mim que me
movimenta", explica Paulinha.
Filha
de Iemanjá, orixá das águas do mar, Joyce dos Santos atualmente
tem 21 anos, fez o santo com seis e sete anos e depois realizou sua
"confirmação". Passou a ser ebome,
o que significa que, se quisesse, desde os 13 anos já podia ser
mãe-de-santo e abrir seu próprio terreiro. "Mas não é só
fazer a obrigação dos sete anos que importa. O que vale é a
vivência, e isso só vem com muito tempo na religião", diz
Joyce, que também recebe Oxum, orixá das águas dos rios. "Desde
criança era assim. Quando estou com Iemanjá sinto um calor intenso,
terrível e parece que o chão vai se abrir. Quando é Oxum eu choro
o tempo inteiro. Na hora da incorporação as duas brigam pela minha
cabeça, mas quase sempre Iemanjá ganha", afirma.
Quizilas
- Adulto ou criança, todo iniciado (feito no santo) convive com as
quizilas (èèwó), que são certas proibições determinadas pelo
orixá, "dono da cabeça" do filho ou filha-de-santo.
Joyce, por exemplo, não pode comer peixe de pele nem lula. "Me
empola toda, é quizila de Iemanjá. Se desobedecer minha vida anda
para trás", garante. Já Ricardo não pode comer abóbora ou
melão porque Iansã não gosta. Mas isso nunca foi complicado para
ele. "Eu mesmo não gosto de abóbora ou melão. O problema é
que as quizilas também se referem ao que podemos ou não vestir.
Adoro rock, mas não posso usar roupa preta, nem camisa com aquelas
caveiras porque tem quizila com o santo. Se usar, algo de ruim pode
me acontecer", revela o adolescente que traz dois furos em cada
orelha. Mas e quanto aos brincos, será que tem quizila com santo?
"Com santo não", diz Ricardo. "A quizila dos brincos
é com a minha avó. Tatuagem também quero fazer, mas não posso,
tem quizila com ela", brinca o ogan.
Preconceitos
- Falar com orgulho do candomblé às vezes se limita aos muros do
terreiro. A maioria desses adolescentes já foi ou continua sendo
vítima de preconceitos. "Quando eu era pequeno uma professora
me chamou de filho do Diabo", lamenta Ricardo. O pior, contudo,
começou em 1993, quando a Editora Gráfica Universal, do Grupo
Universal do Reino de Deus, comprou as fotos de Paulinha, Ricardo, e
de uma outra criança de candomblé que foram personagens de matéria
publicada em um jornal carioca, em 1992. As fotos, conseguidas
eticamente e com o consentimento das famílias das crianças,
passaram a ser da agência do jornal carioca e, vendidas, foram
usadas de maneira depreciativa no jornal Folha Universal. Não
satisfeito, três anos depois, o bispo Edir Macedo publica a 13a
edição (1996) do livro "Orixás, Caboclos e Guias - Deuses ou
Demônios" (o Ministério Público Federal da Bahia entrou com
Ação Civil Pública para pedir a suspensão da venda dessa obra).
Na tiragem de 50 mil exemplares, outra vez as fotos de Paula e
Ricardo aparecem, agora sob a legenda: "Essas crianças, por
terem sido envolvidas com orixás, certamente não terão boas notas
na escola e serão filhos-problemas na adolescência".
"Aí
foi demais, todos nós sofremos muito", afirma Mãe Palmira, que
processou a editora. "As pessoas nos apontavam na rua e nos
chamavam de macumbeiro, mas de forma ruim, depreciativa", diz
Paulinha de Xangô. "No terreiro em que me iniciei, em
Jacarepaguá, fiz as curas, aquelas marquinhas no ombro. Nunca fui
com camiseta de manga curta para a escola para não deixar aparecer.
Também nunca fui com os colares, tenho vergonha", lamenta Joyce
de Iemanjá. As irmãs Michele e Alessandra, do Axé Opó Afonjá,
chegaram a freqüentar grupos jovens católicos e até fizeram
Primeira Comunhão para se sentirem mais aceitas e escapar do
preconceito. "Eu amo os orixás e amo minha religião. O que eu
não entendo é que, se podemos respeitar a cultura dos outros, por
que não podem respeitar a nossa?", questiona Ricardo Nery.
Lei
de ensino religioso pode agravar preconceito
O problema da discriminação sofrida pelas religiões afro-descendentes é antigo e a implantação da Lei 3.459, em setembro de 2000, que estabeleceu o ensino religioso confessional na rede estadual do Rio de Janeiro, não ajuda a diminuí-lo. De acordo com Valéria Gomes, coordenadora de ensino religioso do Rio, dos 500 professores de ensino religioso aprovados no concurso realizado em janeiro de 2004, 68,2% são católicos, seguidos de 26,31% evangélicos (de diversas designações) e 5,26% de "outras religiões". Neste último grupo estão professores de umbanda (com cinco contratações); o espiritismo segundo Alan Kardek (três), a Igreja Messiânica (três) e um professor mórmon. A secretaria informou que nenhum professor de candomblé foi contratado porque não há registro de alunos que praticam candomblé.
O problema da discriminação sofrida pelas religiões afro-descendentes é antigo e a implantação da Lei 3.459, em setembro de 2000, que estabeleceu o ensino religioso confessional na rede estadual do Rio de Janeiro, não ajuda a diminuí-lo. De acordo com Valéria Gomes, coordenadora de ensino religioso do Rio, dos 500 professores de ensino religioso aprovados no concurso realizado em janeiro de 2004, 68,2% são católicos, seguidos de 26,31% evangélicos (de diversas designações) e 5,26% de "outras religiões". Neste último grupo estão professores de umbanda (com cinco contratações); o espiritismo segundo Alan Kardek (três), a Igreja Messiânica (três) e um professor mórmon. A secretaria informou que nenhum professor de candomblé foi contratado porque não há registro de alunos que praticam candomblé.
Separados
por credo - A meta, segundo
Valéria, não é discriminar. "Queremos que professores
católicos ensinem a alunos católicos e evangélicos a evangélicos,
por exemplo. Mas as turmas ainda não estão separadas por credos;
enquanto isso, nosso objetivo é passar valores", explica.
Contudo, de 12 professores de ensino religioso entrevistados, nove
revelam utilizar trechos da bíblia que sejam comuns para católicos
e evangélicos no conteúdo pedagógico de sua disciplina. Muitos
utilizam textos do padre Marcelo Rossi. Uma educadora entrevistada
nega que o objetivo da lei seja converter alunos, mas revela: "No
ano passado eu tinha uns oito alunos que eram ogans, mas acabaram
entendendo que estavam errados e hoje não são mais", comemora.
Os professores entrevistados também afirmam que, apesar da matrícula
nesta disciplina ser facultativa, como as escolas não conseguem
elaborar outras atividades para os alunos que não queiram cursá-la,
a freqüência é quase total.
Críticas
- Para o deputado estadual Carlos Minc (PV-RJ), a Lei do Ensino
Religioso no Rio é espantosa e só existe de maneira confessional
neste estado. O parlamentar afirma que já imaginava que crianças e
adolescentes de outras religiões, inclusive as de candomblé, seriam
ainda mais discriminadas. "Entramos com ação no Supremo
Tribunal Federal. O próximo governo pode aprovar outra lei anulando
a atual. Todos estes professores são licenciados para ensinarem
outras disciplinas do currículo e não serão prejudicados".
Para Minc, o Sindicato Estadual de Profissionais da Educação (SEPE)
e todas as faculdades de educação deveriam "comprar essa
briga" e trabalhar para que os professores sejam mais
pluralistas.
A
lei também não agradou a Palmira de Iansã e Beata de Yemanjá,
conhecidas e respeitadas Mães-de-santo da Baixada Fluminense. "Se
a escola quer se meter com religião, ela deve ensinar a história de
todas as religiões e não discriminar ninguém", afirma Mãe
Palmira. "Se a escola discrimina os alunos de candomblé, a
escola não merece nenhum respeito", sentencia Beata de Yemanjá.
*
Stela Guedes Caputo
é jornalista e Doutora em Educação pela PUC-Rio. Defendeu tese com
o tema "Educação nos terreiros e como a escola se relaciona
com crianças que praticam candomblé", em julho de 2005. Os
nomes dos professores de ensino religioso foram preservados. Os nomes
das irmãs Michele e Alessandra são fictícios porque elas ocultam
sua religião na escola para não serem discriminadas.
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