terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Reflexões sobre a Saúde da Mulher Negra e o Movimento Feminista

Reflexões sobre a Saúde da Mulher Negra e o Movimento Feminista

Maria José de Oliveira Araújo *


(Este artigo baseou-se em texto escrito em 1993 e que constituiu uma das primeiras reflexões a chamar a atenção para o desconhecimento da saúde da mulher negra no Brasil. Publicado em Cadernos de Pesquisa 2, de julho de 1994, o texto foi originalmente apresentado no Seminário ?Alcances e Limites da Predisposição Biológica?, realizado pelo Programa Saúde Reprodutiva da Mulher Negra, do Cebrap, em São Paulo, de 6 a 7 de dezembro de 1993.)

O movimento feminista ? até por seu caráter minoritário e radical ? sempre esboçou a preocupação com a problemática do racismo, que, no entanto, passava mais pela questão da democracia do que pela categoria de gênero. Como conseqüência dessa visão, em sua etapa inicial o feminismo privilegiou na sua luta as questões que diziam respeito à condição de opressão e à identidade feminina, sem delimitar muito bem a fronteira entre a identidade das mulheres negras e a das mulheres em geral.

O movimento de mulheres pela saúde no Brasil nasceu no início dos anos 80, no interior de grupos de mulheres que tinham, além da luta pela saúde, outras prioridades, como a luta por creches, trabalho igual, salário igual e combate à violência contra a mulher. Desses grupos participavam, basicamente, mulheres de classe média que, em sua maioria, apresentavam algum vínculo com partidos políticos de esquerda. Já nesse momento constatava-se a presença de mulheres negras, mas a questão racial não era colocada como um ?problema político? ou priorizada enquanto tema de discussão.

O mito e a mística da ?sororidade?

Ao longo de sua trajetória, o feminismo tanto criou novos valores nas relações sociais como também muitos mitos de origem, entre eles o que se traduzia no paradigma de que todas éramos iguais. Esta concepção de ?sororidade? ? aqui eu uso uma palavra que foi introduzida por uma feminista francesa, que vem de ?sóror?, irmã ? realmente reflete o que aconteceu naquela época, que nos impedia de trabalhar as diferenças, marcadamente em relação às lésbicas e às negras.

A primeira etapa do feminismo priorizou o que parecia identificar as mulheres entre si e subestimou o que poderia tê-las diferenciado. Evidentemente, esta foi uma forma encontrada para o fortalecimento do movimento de mulheres, ainda incipiente e sem poder na sociedade brasileira. Como bem revela o depoimento de uma mulher negra, pioneira no trabalho de combate à violência contra a mulher no Brasil: ?Eu nunca me senti negra no movimento de mulheres, porque este movimento não tinha cor?. Isto, naquele momento, era uma realidade.

Reduzimos, daquela forma, qualquer diferença à diferença entre os sexos e nos irmanamos, de certa maneira artificialmente. Esta concepção que inspirou a prática de muitos grupos de mulheres, tanto na Europa como aqui no Brasil, estava calcada na ideologia da revolução de maio de 1968, que aconteceu na França, segundo a qual o coletivo deveria prevalecer sobre o singular, em uma perspectiva formalmente igualitária. As mulheres não tinham outras especificidades a não ser enquanto mulheres.

A ignorância das diferenças e das divergências na sororidade criou períodos de uma sociabilidade muito agradável, mas se revelou também bastante incapaz e impotente para resolver todos os conflitos que surgiam, tanto de ordem pública como individual. Por outro lado, as mulheres negras ou brancas, homossexuais ou heterossexuais, nos primeiros anos da organização do movimento de mulheres, só se organizaram enquanto mulheres e suas especificidades eram assim entendidas.

A saúde da mulher negra

A especificidade da saúde da mulher negra começou a ser discutida a partir de reivindicação das próprias mulheres negras, coincidindo com o surgimento de grupos de mulheres negras organizados nas diferentes regiões do país. A esterilização cirúrgica, tema controvertido e polêmico, foi o eixo que conseguiu unir e desencadear o processo de trabalho conjunto, que atualmente se estende às outras questões dos direitos reprodutivos ? espaço onde o movimento de mulheres tem investido grande parte da sua energia.

O movimento feminista pela saúde e direitos reprodutivos tem contribuído para a reflexão sobre a questão da saúde das mulheres negras e reconhece plenamente as suas especificidades nesta área. No entanto, esta interlocução não tem se dado sem rancores e incompreensões de ambos os lados. Frases como: ?as feministas não incorporam os problemas das mulheres negras? ou ?as mulheres negras nos acusam de discriminação? são freqüentemente ouvidas nos espaços coletivos de reflexão.

As mulheres negras estão presentes no movimento feminista, mas o conhecimento que o movimento feminista como um todo tem dos problemas por elas enfrentados é fragmentado e adquirido em espaços gerais de discussão de outros temas. Falta na bagagem do movimento feminista uma discussão mais profunda sobre o racismo e suas conseqüências perversas sobre a vida e a saúde da mulher negra. Discutir a especificidade da saúde da população negra, e das mulheres negras em particular, pressupõe não apenas uma análise socioeconômica, mas também o repensar a ciência enquanto produtora e detentora do conhecimento.

Indicadores do estado de saúde das mulheres negras

Concordo com a médica Fátima Oliveira, que afirma em seus artigos e reflexões sua crença numa predisposição biológica interagindo com fatores de diversas ordens, que vão desde as reais condições de vida, passando pela opressão de gênero e de raça. Foi sob esta ótica que li e interpretei os dados referentes à saúde da mulher negra que apresentarei a seguir. Antes, porém, gostaria de ressaltar aqui a escassez de dados sobre o estado de saúde da população negra e, sobretudo, das mulheres. Creio que o diagnóstico epidemiológico da situação de saúde da população negra é de fundamental importância para o planejamento da saúde coletiva, o que implica a necessidade urgente de melhorar os dados existentes.

Os dados socioeconômicos referentes à população negra por si só já são indicadores de seu estado de saúde: 85% das mulheres negras encontram-se abaixo da linha de pobreza e sua taxa de analfabetismo é o dobro, se comparada a das mulheres brancas. Somando-se a isso o menor acesso aos serviços de saúde de boa qualidade, as mulheres negras têm maior risco de contrair e morrer de determinadas doenças do que as mulheres brancas.

Os dados nacionais sobre o acesso das mulheres negras ao pré-natal estão diretamente relacionados com as classes sociais às quais pertencem: 50% das mulheres de baixa renda não têm acesso ao pré-natal, com o que podemos deduzir que as mulheres negras devem ser as grandes prejudicadas, já que elas se encontram nas faixas de menor renda da população.

Os dados de morbidade da Secretaria Municipal de Saúde da cidade de São Paulo, levantados pelo programa que introduziu o ?quesito cor? no sistema de informação, confirmam os dados nacionais. As mulheres negras têm acesso muito menor ao pré-natal, que se inicia mais tardiamente do que o das mulheres brancas.

A situação norte-americana

Encontrei na bibliografia norte-americana alguns dados sobre as diferenças entre a morbidade e a mortalidade das mulheres negras e brancas. Por exemplo:

* com relação à expectativa de vida, as mulheres brancas dos EUA apresentaram uma média de 75,3 anos e as mulheres negras, de 69,4 anos;
* 52% das mulheres com AIDS nos Estados Unidos são negras;
* a taxa de mortalidade infantil entre as crianças negras é quase o triplo daquela constatada em relação às crianças brancas;
* as taxas de mortalidade materna nos Estados Unidos demonstram que as mulheres negras morrem duas vezes mais por causas maternas do que as brancas;
* as pesquisas norte-americanas mostram que as mulheres negras têm três vezes mais possibilidade de desenvolver o lupus, doença auto-imune que está ligada também às condições de vida em geral e cuja possibilidade de ocorrência aumenta se a mulher é jovem e negra. A maioria dos casos de lupus diagnosticados nos Estados Unidos refere-se a mulheres jovens e negras, apesar de esta ser uma doença de diagnóstico às vezes difícil na população como um todo, pela diversidade dos sintomas;
* em relação à hipertensão arterial, os dados dos EUA são mais ou menos os mesmos que os do Brasil. Apesar da importância dessa doença para as mulheres, até agora poucas pesquisas vêm sendo realizadas, e apenas entre homens. No tratamento das mulheres constata-se a discriminação: mesmo quando têm sintomas, ou problemas cardíacos, as mulheres acabam sendo tratadas mais tardiamente. A literatura refere que nas mulheres negras este diagnóstico vem muito mais tarde que para as brancas, sendo que as negras têm uma possibilidade maior de apresentar a doença. (Isto também acontece no Brasil. Os dados da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo ? referentes à demanda do Sistema Único de Saúde e pesquisados através de queixas da população ? revelam que, na parcela da população preta atendida com queixa de doenças cardiovasculares, a hipertensão alcança um índice 9,2% superior aos apresentados pelas pardas e brancas);
* em relação à doença inflamatória pélvica, que constitui uma das causas de esterilidade, os dados mostram que nos Estados Unidos ela é muito mais comum nas mulheres negras que nas brancas. Embora muitas pessoas afirmem ser esta uma doença relacionada à prática da liberdade sexual e até à promiscuidade, ela está intimamente ligada aos níveis de condições de vida das mulheres;
* os dados sobre fibroma ou mioma apresentam números maiores para as mulheres negras. (No Serviço de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Ribeirão Preto, entre 1986 e 1988, foram pesquisadas 432 mulheres portadoras de fibroma, perfazendo 18% dos casos de internação. Neste período, comparativamente, este índice foi 3,2% mais freqüente entre as mulheres negras. Os/as pesquisadores/as declaram que a predisposição biológica parece ser um fator importante no aparecimento e na modulação do crescimento do mioma. Quem trabalha com uma outra visão, que não a da ginecologia tradicional, sabe que o mioma está relacionado com fatores alimentares, estresse e com as condições de vida em geral);
* no câncer de colo de útero, que é um tipo de câncer ligado às condições socioeconômicas das mulheres, a taxa é duas vezes mais alta para as mulheres negras do que para as brancas nos Estados Unidos;
* no caso do câncer de mama, as mulheres negras têm menor predisposição para desenvolvê-los. Há uma série de explicações para isto, entre elas a questão alimentar, relacionada à quantidade de proteína ingerida. Mas o que os dados mostram é que, na última década, de 12% a 15% das mulheres negras com câncer de mama apresentaram uma média de sobrevida cinco vezes menor que as mulheres brancas. Isto quer dizer que, apesar de as mulheres negras terem menos câncer de mama, elas morrem em maior quantidade e mais precocemente por esta ocorrência. É evidente que isto está ligado não só às condições vida, mas, sobretudo, ao acesso dessas mulheres a serviços de saúde de boa qualidade;
* em relação ao diabetes, as mulheres negras apresentam uma particular vulnerabilidade para desenvolver esta doença. Atualmente, enquanto o homem negro tem 9% a mais de probabilidade de desenvolver diabetes do que o homem branco, as mulheres negras têm aproximadamente 50% a mais de chance de se tornarem diabéticas que as mulheres brancas.


* Sozinha, a genética não explica as condições de saúde da população negra. Minha tendência, enquanto leiga em genética, é achar que a maioria das doenças que matam as mulheres negras está diretamente ligada às condições de vida.

Quero ressaltar aqui a importância de que o movimento de mulheres negras e o movimento feminista dêem as mãos, para que possamos realmente ter ? considerando e respeitando as diferenças ? uma identidade maior. São necessários esforços redobrados para pesquisar e documentar a saúde da mulher negra, os riscos reprodutivos e os diferenciais de acesso a informação e serviços de saúde, a fim de possibilitar a sistematização de um conjunto de propostas de políticas públicas a serem trabalhadas com a máxima prioridade.


* Maria José de Oliveira Araújo é médica e fundadora do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, de São Paulo. Foi coordenadora do programa de saúde da mulher do município de São Paulo, entre 1989 e 1992, e Secretária Executiva da Rede Feminista de Saúde, de 1995 a 2000.

Nota: Para maiores informações sobre as referências bibliográficas e dados apresentados neste trabalho, contatar a autora pelo e-mail cfssaude@uol.com.br

Jornal da Rede Feminista de Saúde - nº 23

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