terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Tipologias brasileiras: o pelintra


Tipologias brasileiras: o pelintra

Guilherme Sarmiento da Silva
Mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio e doutorando em literatura na mesma universidade


Uma das interpretações memoráveis de João Caetano ocorreu no ano de 1846, no teatro São Pedro de Alcântara. O papel: D. Cézar Bazin, protagonista da peça homônima de Dennery.( PRADO, 1972, 92-94) O ator brasileiro, reconhecido por suas atuações vigorosas e expressivas, deu corpo ao personagem título destacando o patético, exagerando nos trejeitos e ornamentos que poderiam ser lidos como a representação de uma nobreza cada vez mais anacrônica, lutando para se manter atuante em meio às atordoantes transformações sociais de seu tempo. Com o sombrero espetado por uma enorme pena branca, na tradição romântica dos panache, Cézar Bazin, nobre bêbado, endividado, mal vestido, realizava inúmeras peripécias diante de um público atento e ruidoso: protegia os fracos e oprimidos, salvava virgens ameaçadas, expressando em gestos caricaturais sua bravura cômica. Não deve ter sido difícil para os espectadores identificarem aí um tipo muito comum aos transeuntes cariocas, como atestam alguns escritos do período.

Já em 1842, o jornal satírico O Carapuceiro, redigido pelo padre Lopes Gama, descrevia pormenorizadamente aquele que em muito poderia contribuir para a composição do extravagante nobre vivido por João Caetano nos palcos. Segundo o padre satirista pernambucano no seu artigo "O que é ser pelintra?":

A roupa do pelintra é por via de regra tão estreita e apertada que parece grudada ao corpo de jeito que lhe constrange os movimentos. Traz pendente na algibeira do colete quando usa deste (porque muitas vezes anda sem ele) uma correntinha de relógio que preciso fora ver-se para se não julgar que é uma correntinha de candeeiro. O enorme charuto na boca é um traste indispensável, assim como uma gravata encarnada, azul, verde, amarela etc etc. do tamanho de uma toalha de mesa. Alguns há que já não usam de camisa de fazenda branca, senão de chita, ou de qualquer riscadinho. As suas maneiras são todas afetadas, e têm um certo palavreado que os denuncia de eminentemente leviano e insuportavelmente tolo. Picar cavalos, bolear com primor, engomar o assoalho com os pés nas monótonas quadrilhas, fumar, jogar e namorar tais são todo o mérito, todo o préstimo de um verdadeiro pelintra. O botequim e o teatro e as esquinas são o seu pórtico, o seu liceu, a sua academia, o seu ateneu. (GIRON, 2004, 122)

Nenhum detalhe que pudesse desfavorecer a estampa da triste figura foi esquecido: do figurino exagerado aos abusos da fala e do gesto, tudo denunciava uma falta paradoxal, uma inadequação tão mais evidente quanto maior o esforço despendido para superá-la. O "pelintra" trazia inscrito no corpo o malfadado desejo de ser nobre, pois, independentemente do maior ou menor sucesso em emular os modos da Corte, o acúmulo de signos reciclados desgastariam-se antes mesmo que ficassem adequados ao uso - como Lopes Gama deixou escapar em sua caricatura, o aperto da indumentária contrastava com a intensa mobilidade de um novo tipo surgido através e contra os costumes no qual foi engendrado, uma personagem em trânsito para outras formas de afirmação social.

Do botequim para o teatro, do teatro para as esquinas, o pelintra reivindicava um estatuto cujo endosso só poderia se dar fora dos espaços para os quais sua performance fora talhada. Logo, o espalhafato do vestuário colorido, com a gravata encarnada, a fazenda de chita "riscadinha" seriam substituídas pelo paletó e as botinas "Clark" - ou um similar nacional - , a cartola e a gravata escuras, tornando-o mais sóbrio e ainda assim fluido e imprevisível para os que buscam conferir-lhe um caráter.

Acompanhando o percurso semântico do termo, veremos que seu comportamento não destoou da personagem a quem emprestou o nome. Adaptação da palavra francesa plêutre para o português, deu origem a pelo menos mais duas corruptelas - "peralta" e "pilantra" - utilizadas até hoje correntemente, ao contrário de pelintra, que praticamente sobrevive pela curiosidade daqueles que consultam o dicionário. Pelintra: pessoa pobre ou mal trajada, mas com pretensões a figurar; pobre, mas pretensioso. Ainda no final do século XIX, Arthur Azevedo, em sua peça O bilontra, vai realizar uma releitura da tipologia, valorizando o aspecto fugidio de sua significação:

Se quer saber o que é bilontra,
é bom que saiba, antes do mais,
que esta palavra não se encontra
no dicionário de Morais.
A bilontrage é sacerdócio
que cada qual pode exercer;
entre o pelintra e o capadócio
o meio termo vem a ser.
(MENCARELLI, 1999, 38)
Aqui, o dramaturgo faz justiça à incapacidade de se definir um termo metamorfo por natureza, sujeito às mudanças do tempo, ao linguajar das ruas, ao sabor de novos disfarces. O pelintra tornou-se mera gradação do meio-termo "bilontra", cujo escandir produz a sonoridade do antigo nobre decadente murmurado pelo padre Lopes Gama. A comparação fica mais clara quando continuamos a leitura dos versinhos debochados de Arthur Azevedo: "Tipo de calças apertadas,/ chapéu de fitas espantadas,/ em cada pé bico chinês; / pode apostar, ó prima, contra/ o que quiser que ele é bilontra, / se bem que finja ser inglês", continuou, completando as tinturas do fingidor. Novamente, temos uma figura definida pelo que não é, algo que só se realiza através de sua própria negação.

Seguindo mais adiante, chegaremos até o século XX, no qual o pelintra vai se fundir com a mitologia umbandista - veremos que isto não foi acidental. Hoje em dia, o tipo perpetua-se na imagem de um Exu - ou como preferem outros, de um Egum -, o Zé Pelintra, negro malandro, capoeirista, cujo lenço encarnado no pescoço, terno branco de casimira, chapéu de aba mole, substituiu a indumentária original do transitório aspirante à nobreza carioca. Mas não se enganem: sobre a imagem do malandro decalca-se o espectro translúcido do original. As roupas largas são o disfarce do mesmo ou a última mão de tinta de um palimpsesto em andamento.

Lidar com estas criaturas, portanto, requer atenção desdobrada. Acostumados às altas definições de som e imagem, devemos aceitar os efeitos de uma dupla exposição, que sobrepõe no corpo móvel os sinais de tempos distintos, ou mesmo apaga os vestígios de um transeunte. A convenção imagética que melhor serviu ao espírito do pelintra foi justamente aquela que o silenciou: as fantasmagorias, experiências imagéticas que ainda buscavam a fixação do movimento contínuo. No fundo das paisagens vazias dos primeiros daguerreótipos de Niépce, há uma multidão que não se deixou captar. Na esquina do Boulevard du Temple, um dos locais mais movimentados de Paris, um dia inteiro de exposição da placa de cobre à luz só imortalizou o diligente engraxate, uma sombra pequenina e fixa em seu ponto de trabalho. A turba ambulante evaporou como éter. No Brasil não seria diferente. A intensa vontade do pelintra em chamar a atenção dos contemporâneos contrasta cruelmente com sua invisibilidade. E não existe química capaz de emulsionar sua imagem integral, senão por algumas gotas de imaginação. Para ela, a folha em branco nunca foi problema.

Como para muitos a "modernidade" brasileira surge praticamente junto ao modernismo do século XX, comparar o pelintra ao flanêur torna-se temerário. Corre-se o risco de induzir uma categoria própria de estágios mais avançados de indústria a regiões afeitas a tipos sociais menos cosmopolitas e urbanos. Entretanto, as possibilidades de uma abordagem equivocada diminuem no momento em que se focalizam as contradições inerentes ao processo de conceituação do móvel, e não da modernidade, na medida em que se percebe a sociedade em sua natureza dinâmica sob quaisquer circunstâncias. Tal como os tipos europeus, a manifestação do pelintra deu-se a reboque de tensões próprias a períodos de transformações sócioeconômicas profundas, estimulantes para a confecção de novos tipos sociais.

As dificuldades em nomear os protagonistas emergentes do Brasil oitocentista advém de uma abordagem histórica determinada. A invisibilidade em que se encontram certos estratos da sociedade diante dos muitos marcos de afirmação sócioeconômica brasileira - a chegada da Corte ao Brasil, a Independência, fim do tráfico de escravos, abertura dos portos, etc - tornou as espacialidades outrora habitadas, em terrenos baldios. Para trabalhar com matéria tão esquiva, alguns de nossos pensadores tiveram de intuir do silêncio uma tática expressiva, reveladora de um processo social dilacerado entre a ordem e a desordem, como o fez Antônio Cândido ao analisar o romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias(CÂNDIDO, 1978, 317-342).

Segundo o crítico brasileiro, a omissão dos dois estratos da trama - o escravo e a classe dirigente - suprimiu elementos próprios tanto da manifestação do trabalho quanto do controle de mando, deixando a narrativa livre para mostrar a " penetração recíproca dos grupos" comuns às porções médias da sociedade. A falta dos extremos sociais notada na obra permitiu a emergência de uma espécie de realismo, pois aspectos fundamentais para se entender o período acabaram paradoxalmente frisados. Em "Dialética da malandragem", Antônio Cândido soube reconduzir o olhar contemporâneo ao ambiente de gestação de Leonardo Pataca, em cujo processo criativo a leitura de folhas cômicas e satíricas das décadas anteriores, como o jornal O carapuceiro do padre Lopes Gama, constituiu matéria fundamental.

Cândido não chegou a localizar expressamente seu tipo malandro. Bastou indicar que o efeito do romance produzia o que ele definiu como "diluição dos extremos". As sugestões deixadas, entretanto, devem ser revistas com atenção. Elas podem também indicar a melhor forma de se captar imageticamente o trânsito do pelintra: estabelecer os pontos entre os quais ele se movimentou, ou seja, indicar os extremos de rejeição e emulação que permitiam a sobreposição de dois mundos distintos - o antigo e o novo - que emergiam durante sua "performance". No caso do dândi ou do flanêur, vemos a aristocracia de um lado e a burguesia de outro, polarizando sua trajetória muito claramente. No traçado seguido pelo pelintra, outros jogos de cena, outras ambições e possibilidades de transição social foram possíveis.

Mormente o sucesso de alguns comerciantes, no século XIX não houve ambiente propício para a instauração de uma burguesia nos moldes da Europa por aqui. O trabalho manual era desprezado como meio de vida, e o ócio, condição de suma importância para que se explorasse economicamente os transeuntes livres, nunca foi matéria pacífica para os citadinos escravocratas, sempre prontos a reprimir negros e pardos que se aglomeravam em torno de novidades chegadas da Europa como cosmoramas, panoramas e outros divertimentos da época. As camadas médias não se alavancaram através de um caráter mercantil, mas pela atuação de um discurso de moderação e apego ao monarquismo, mantidas à sombra de um Imperador paternal, envolvidas pelo medo de uma revolta escrava.

"Todos os dias se engenham e se criam empregos absolutamente inúteis só para arranjar afilhados. Mas que sorte desgraçada não é a do funcionário público!", suspirava o padre Lopes Gama, ao notar a instabilidade do funcionalismo imperial, sujeito à volubilidade do poder e ao arbítrio do governo (GAMA, 1996, 393-402). Para ocupar essa ampla rede jurídica, política e burocrática que se irradiava do poder, foram convocados os bacharéis e doutores formados em Coimbra, Paris, ou mesmo nas faculdades de São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro, muitos deles mulatos, que iam ajudando a tornar a burocracia imperial mestiça ao ponto de Arruda Câmara (um liberal) chamá-la de "acanalhada e absurda aristocracia cabundá"( GAMA, 1996, 20). Incômodos próprios a um processo original de transição sócioeconômica, que preparou a sociedade brasileira para absorver os filhos, tanto os legítimos quanto os ilegítimos, desgarrados dos engenhos, das fazendas, para os escritórios assobradados das capitais.

Diante deste estado de coisas muito peculiar, ao pelintra não coube um papel intermediário do aristocrata e do burguês, como ao flanêur benjaminiano. Nenhum destes extremos sociais estavam muito bem definidos no Brasil dos primeiros quartéis do século XIX, como atestam nossas inúmeras fisiologias. De um lado, uma aristocracia em cujo ingresso não contava a tradição, o sangue; de outro, uma classe média de burocratas, de bacharéis. No caminho de um para outro, um número considerável de homens e mulheres invisíveis.

Por ver o país através da ótica do pitoresco, por não compactuar com o envolvente jogo retórico da elite autóctone, foram os estrangeiros que aqui aportavam que melhor testemunharam o mundo encoberto pela polidez senhorial. Da década de 1820, Debret, que aqui chegou integrando a Missão Francesa, deixou o estranhamento de ruas obstruídas por uma turba de negros carregadores e de negras vendedoras de frutas (DEBRET, 1981, 160). Quarenta anos depois, os ingleses Charles Ribeyrolles e Victor Frond vão dizer que, na falta de monumentos históricos, as ruas do Rio ofereciam aos viajantes verdadeiros "museus viventes", com uma multidão misturada que trafegava nos portos, nos mercados, nas praças públicas (PECHMAN,2002, 131).

Para o brasileiro letrado do oitocentos, somente parte deste aglomerado possuía direito de representação. A consciência do flaneur chegou antes que a multidão tomasse sua forma própria; as fantasmagorias europeias cruzavam o oceano Atlântico pousando sobre a fronte de nossos primeiros românticos, fazendo-os sonhar em imagens e palavras docemente estrangeiras.

Ainda na década de 1850, José de Alencar reclamava do ambiente da Corte por não cultivar a arte da flanerie "passeio ao ar livre, feito lenta e vagarosamente, conversando ou cismando, contemplando a beleza natural ou a beleza da arte; variando a cada momento de aspectos e de impressões". O escritor reclamava do Passeio Público, abandonado, juntamente com os preconceitos da boa sociedade, que vivia enfunada em seus sobrados por considerar o passeio "coisa de pobre", o que prejudicava, na opinião do escritor, o desenvolvimento do salutar hábito parisiense (ALENCAR, 1955, 61-68).

Em suas crônicas, Alencar acertou ao vincular a arte da flanerie com a multidão, mas dissimulou ao responsabilizar a frigidez das elites e as condições precárias do Passeio Público pelo esvaziamento das ruas. O grande empecilho para que o flanêur encontrasse lastro próprio advinha menos da quantidade e mais da qualidade, digamos assim, em que se encontrava parte significativa da população, impedida de experimentar a plenitude de seu ócio, de seus passos. Segundo dados do censo de 1849, existiam quase oitenta mil escravos na cidade do Rio de Janeiro, fora os negros alforriados, ou seja, mais da metade da população que constituía a cidade era negra (KARASCH, 2000). Para Alencar, assim como para seus contemporâneos, uma das partes constitutiva da multidão não tinha direito à narrativa.

Diante de tal quadro, seria impossível experimentar o sentimento de embriaguez dado aos poetas que se deixavam levar pela turba, identificando-se de maneira irrestrita com todos os seus componentes. Quando se lê o romance Luneta Mágica (1869), de Joaquim Manuel de Macedo, por exemplo, percebe-se uma dinâmica totalmente oposta à notada por Poe no inaugural conto O homem da multidão, no qual o narrador, sem perder o senso de individualidade, imiscui-se aos milhares de passantes provando a excitação de observar sem ser observado. No livro do brasileiro, o protagonista Simplício provou de uma intimidade mais ríspida. Na Praça da Constituição "cheia de povo", foi hostilizado a ponto de ver o espaço público evacuado subitamente, deixando-o a sós com uma estátua equestre. Mais adiante, depois de haver entrado numa casa de chá bastante frequentada, viu todos os clientes saírem antes que lhe fosse servido o café. No teatro, o público expulsou-o do camarote, aos gritos. Aqui há uma estranha subversão do alheamento próprio ao flanêur baudelairiano. O transeunte sente-se notado, destacado em sua culpa interior: não há anonimato. Também não há multidão, pois mesmo o poder de uma luneta diabólica não foi capaz de ampliar a visão da personagem, deixando boa parte da realidade interdita, subentendida. Seu olhar não absorveu a perambulação dos escravos. Mas a atuação da escravaria invisível sobre a paranoia de Simplício não pode ser menosprezada (MACEDO, 2001).

Se existiram modelos de conduta entre os quais o pelintra titubeava, se existiu um substrato humano no qual ia deixando suas máscaras, a burguesia e a aristocracia ortodoxa não ofereceram as características que, fundidas, criariam o seu corpo indeciso, nem a multidão homogênea, o seu refúgio. Os extremos que melhor polarizaram o trânsito da personagem foram os senhores de terra e os trabalhadores da cidade, com destaque para os burocratas do Império. O pelintra, então, espelhou a transição possível de uma sociedade colonial, escravocrata, para uma sociedade cosmopolita, urbana, estamental. Foi a personagem que simbolizou esta passagem.

Vagando sem direção precisa, carregando os signos de um regime dissoluto em meio à construção das bases de um outro ainda por vir, o pelintra, tal como Leonardo Pataca, guardava em seu próprio nome a herança de uma economia ultrapassada, mas, como filho de criação de um pequeno comerciante - o seu padrinho barbeiro -, possuía um interior maleável para a cunhagem de outras efígies. Seu rosto tendia a uma inexpressividade cautelosa, de onde retirava sua força de adaptação aos mais variados ambientes.

Estas oscilações na recepção da personagem sem vínculo social, sem peias, cuja sobrevivência dependia exclusivamente de sua capacidade individual, ilustrou muito bem as negociações sociais para que a ambição do ganho fosse aos poucos assimilada aos modos da Corte. Na descrição do pelintra, além das roupas imitadas de Paris, consta um cabelo de cigano que, segundo Lopes Gama, acentuava o seu ridículo (GAMA, 1995, 378). A primeira noite que Leonardo Pataca, protagonista de Memórias de um sargento de milícias, passou fora de casa, foi em companhia de ciganos, descritos como "gente ociosa e de poucos escrúpulos (...) ninguém que tivesse juízo se metia com eles em negócios, porque tinha certeza de levar carolo". ( CÂNDIDO, 1978, P. 35) Seu pai, alguns capítulos adiante, pagará o preço por se envolver com uma mulher desta casta de "velhacos" que acampavam no Largo do Rocio. Olhando bem para a face da imigração branca, o medo da assimilação de práticas blasfemas justificou parte da indefinição do pelintra em assumir uma postura individualista diante do mundo. Somente parte.

Justamente por expressar com o próprio corpo as marcas de seu tempo, híbrido de negro com branco, o mulato não poderia faltar nesta galeria de tipos. Seu talhe casa de maneira perfeita com o físico do pelintra, mesmo que os registros da época digam o contrário. Pataca poderia bem ser um homem pardo, filho de um português com uma negra, como o foram Gonçalves Dias, Paula Brito, João Gama e outras pessoas de carne e osso que iam ocupando vagas e recebendo titulações imperiais, mas que pouco serviram como modelos para a literatura romântica. Como destacaram vários estudos do período, o homem do primeiro romantismo estava impregnado por arcadismos, o que restringia a expressão de novas tipologias. Ele era meio clássico, meio romântico.

A correlação da imagem do pelintra com o universo negro viria bem mais tarde, no século XX. Só que aí ele vai dizer sobre um outro processo de transição. Vai simbolizar o trânsito daqueles homens que, depois de libertos, penavam nas periferias do Rio de Janeiro, sem um lugar preciso de morada. Igual a Hermes, o Exu representa muito bem aquele que caminha, e, entre os africanos nagôs, a divindade é tida como protetora dos mercados. Nos centros de umbanda cariocas ainda hoje se houve o ponto que relembra a passagem de José Gomes da Silva, o seu Zé, pelas ruas da Lapa, exibindo sua majestade para gente da mais baixa posição social:

Calça, culote, paletó, camisa fina.
Só me falta uma botina, prá acabar de ajeitar.
É Zé Pilintra, sim senhor, é Zé Pilintra seu doutor,
seu doutor, seu doutor...(bis)
Como um pequeno demônio das esquinas brasileiras, cuja lenda de nascimento em Recife e assassinato sobre a linha do trem da Leopoldina parecem perpetuar um ciclo de maldições eternas, o Zé Pelintra resiste. Seu gesto, sua roupa e seu rosto duplicam-se para dar corpo a uma sobrevivência pendular entre o mundo do trabalho assalariado e a sua negação. E enquanto houver diferenças sociais, enquanto houver a percepção fragmentária do tempo, o pelintra estará sujeito a novas metamorfoses, sem fim.

BIBLIOGRAFIA

ALENCAR, José de. Ao correr da pena. São Paulo: Melhoramentos, 1955.

ALVES, Castro. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.

CÂNDIDO, Antônio. "Dialética da malandragem". In: ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de Milícias. Edição crítica organizada por Cecília de Lara. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978.

DEBRET, Jean Babtiste. Viagem Pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1981.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1977.

GAMA, Padre Lopes. O carapuceiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

GIRON, Luís Antônio. Minoridade crítica. São Paulo: Edusp, 2004.

KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2000.

LIGIERO, Zeca. Malandro divino. Rio de Janeiro: Record, 2004.

MACEDO, Joaquim Manuel. As vítimas-algozes: quadros da escravidão. São Paulo: Editora Scipione, 1991.

__________________________A luneta mágica. São Paulo: L&PM Pocket, 2001.

MENCARELLI, Fernando Antônio. Cena aberta - a absovição de um bilontra e o teatro de revista de Arthur Azevedo. São Paulo: Editora Unicamp, 1999.

PECHMAN. Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,2002.

PRADO, Décio de Almeida. João Caetano. São Paulo: Perspectiva, 1972.

SAYERS, Raymond S. O negro na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Edições Cruzeiro, 1958.

VIANNA, Oliveira. História social da economia capitalista no Brasil. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 1987.

Publicado em 20/03/2007

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