quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Comparando experiências de aflição e tratamento no candomblé, pentecostalismo e espiritismo

Comparando experiências de aflição e tratamento
no candomblé, pentecostalismo e espiritismo
(versão preliminar)

Miriam Cristina Rabelo, Paula Schaeppi, Sueli Mota, Juliana Rocha e Marcos Rubens

Introdução

A imbricação entre as temáticas da antropologia médica e antropologia da religião já tem sido reconhecida há algum tempo (B. Turner, 1984; Comaroff,1985). Para os estudiosos que se dedicam a explorar a fronteira e a lidar com os estoques conceituais provenientes de cada uma das disciplinas coloca-se a tarefa de localizar a especificidade mesma da abordagem religiosa à saúde, doença e cura. Por um lado semelhante empreendimento promete ampliar o horizonte teórico da antropologia médica na medida em que fornece bases para uma crítica aos parâmetros biomédicos que desde o surgimento dessa disciplina têm servido de critério (atualmente mais implícito que explícito) de análise. Por outro, provê a antropologia da religião com um conjunto de questões e quadros de referência que lhe permitem aproximar-se de uma dimensão central, mas por vezes bastante negligenciada, da experiência religiosa: sua ação transformadora sobre os corpos.

Em geral as análises convergem no reconhecimento de que os sistemas religiosos oferecem uma interpretação à doença que a insere em um contexto mais amplo de relações entre o humano e ao sagrado: trata-se de uma interpretação (em si mesma já parte do processo terapêutico) que organiza os estados confusos e desordenados que caracterizam a experiência da aflição em um todo ordenado e coerente (Levi-Strauss, 1967; Comaroff, 1980; 1985; Csordas, 1983). Neste sentido, difere da abordagem biomédica que se concentra em estabelecer relações causais entre fatores e que, ao fazê-lo tende a passar ao largo da dimensão existencial da doença. (Taussig, 1980). A terapêutica religiosa é vista, portanto, como uma tentativa de produzir uma reorientação mais geral do comportamento, conduzindo o doente a situar-se segundo novas formas frente aos outros e a si mesmo (Csordas, 1983).

O presente trabalho situa-se precisamente no contexto dessa problemática: propõe uma análise das abordagens terapêuticas desenvolvidas no quadro do pentecostalismo, espiritismo e candomblé . Para tal discute casos de pessoas com problemas relativos ao campo da saúde mental que foram ou estão em tratamento em cada um desses universos religiosos, procurando comparar as diferentes possibilidades de reorientação do cotidiano abertas pela participação religiosa. Convém ressaltar que, dada a própria complexidade do tema, esse trabalho não tem a pretensão de produzir conclusões definitivas mas apenas de levantar algumas questões para a reflexão.

O artigo inicia com uma discussão mais geral que visa esclarecer a abordagem adotada e precisar alguns conceitos. Em seguida são apresentados dados relativos aos grupos religiosos estudados bem como os casos de pessoas que foram tratadas ao seu interior. Esse material é fruto de uma pesquisa mais ampla A conclusão busca delinear um quadro comparativo mais geral e levantar algumas questões para estudos posteriores.


O tratamento religioso e a reconstrução do cotidiano: algumas questões iniciais

No estudo dos processos de tratamento ao interior de grupos religiosos se sobressaem duas questões básicas: os modos pelos quais a experiência da doença é reconstruída ao interior do domínio religioso e as formas pelas quais a experiência religiosa de cura é absorvida e repercute no cotidiano.

Vejamos a primeira questão. Estudos sobre os processos terapêuticos desenrolados ao interior de grupos religiosos tendem a ressaltar o papel dos rituais na transformação da experiência da aflição (Geertz, 1978; Turner, 1967,1969,1974, 1975; Tambiah, 1979; Kapferer, 1979a, 1979b, 1991). Os rituais encerram um domínio especial de ação, que rompe com os parâmetros da vida cotidiana e demanda de seus participantes uma mudança de atitude e atenção. Ao mesmo tempo estabelecem um diálogo especial com o mundo dos dramas e aflições cotidianos, representando-o segundo ângulos e versões novas, por vezes surpreendentes e profundamente desconcertantes.

A noção de enquadre, extensamente trabalhada por Goffman (1986), mostra-se particularmente relevante ao estudo da dinâmica ritual, além de permitir a articulação das diversas contribuições de antropólogos e cientistas sociais. Goffman toma o enquadre como um esquema de interpretação que define o que é relevante em uma dada situação, provendo os atores com pistas referentes ao tipo de atitude a adotar frente a ação que desenrola. Assim mais do que um conjunto de informações sobre a situação, o enquadre opera a nível metacomunicativo, apontando para status mesmo da informação veiculada. Nos rituais enquadres são construídos mediante o uso combinado de diferentes meios: música, dança, discurso falado, luz, modos de ocupação e delineamento do espaço. Mudanças nos modos de apresentação desses meios - a substituição do canto pelo discurso falado ou de um ritmo musical acelerado por outro mais lento – por vezes são utilizadas para indicar mudança no enquadre proposto: representam o que Goffman chama de keying (construção de chaves). Essas mudanças funcionam como metamensagens que sinalizam ao ator que a situação deve ser interpretada segundo novos parâmetros. Por vezes um determinado enquadre é transformado ao ser inserido ou calçado (embedded) em outro enquadre, tomado como englobante. Em um certo tipo de ritual de exorcismo em Sri Lanka, documentado por Kapferer (1979, 1991), uma situação inicial em que vários tipos de demônios dançam ao redor da vítima e participantes aterrorizados dá lugar ao chiste e a comédia, ao ser calçada em um enquadre maior, definido pela subordinação dos demônios a entidades benfazejas poderosas. Esse tipo de transformação sistemática pode também caracterizar o modo pelo qual o ritual se apropria de enquadres característicos do mundo da vida cotidiana. Neste caso, uma atividade, relacionamento ou estado vivido e interpretado segundo certos esquemas no cotidiano – a experiência da doença, por exemplo – aparece, no ritual, sob uma nova luz.

A sucessão de enquadres em um ritual por vezes delineia uma trama narrativa complexa. Estas tramas podem constituir certos domínios ao interior do ritual (fases em que a atenção do participantes é dirigida para a história prestes a se desenrolar) ou podem conectar todas as etapas do ritual e mesmo projetá-las para trás (quando o ritual aparece como resolução pública de um drama originado em outros contextos) e para frente (quando o comportamento a ser adotado pelo doente após sua conclusão deve constituir uma resposta a demandas e compromissos aí contraídos, dando portanto continuidade a uma história formulada, ao menos em parte, no próprio ritual). O recurso à narrativa parece ser particularmente importante para a realização do trabalho terapêutico por duas razões básicas. Primeiro porque o desenrolar de uma história traz em si e anuncia logo de início a possibilidade de uma solução ou desfecho típico; toda trama caminha em determinada direção e cria a expectativa de um determinado fim. Segundo, porque no seu desenrolar mesmo a trama faz emergir o personagem (ou personagens), revelando identidades no fluxo dos eventos que se sucedem. Assim narrar a doença em um contexto de terapia religiosa é muito mais que explicá-la: implica abrir um caminho para sua resolução no curso do qual doença e doente podem ser profundamente redefinidos.

Essa conclusão encontra suporte na maioria dos trabalhos sobre tratamento religioso. Conforme já observamos há um consenso na literatura de que, ao tratar, a religião propõe um novo modo de compreender o mundo – não só a situação da aflição mas também as relações com outros e o próprio senso de identidade. O problema está em que a natureza dessa compreensão em geral não é explicitada nos estudos. Dizer que a transformação que as religiões operam na vida de seus adeptos é desencadeada pela aquisição de novos esquemas interpretativos que, uma vez internalizados, reorientam a ação, conduz a uma visão por demais intelectualizada da experiência religiosa e, o que é mais significativo, ao pressuposto – difícil de se sustentar - de que uma mudança de conteúdos mentais (esquemas, modelos, representações) implica em uma mudança de comportamento.

O mentalismo subjacente a esse tipo de abordagem reflete-se em boa parte das interpretações do processo terapêutico desenrolado no contexto de rituais religiosos em que domina a idéia de que a religião atua sobre a maneira como o doente e demais participantes vêem, percebem ou representam a doença. De fato esta idéia não parece refletir nem as expectativas dos membros que tomam parte do evento nem a dinâmica mesma dos rituais em que uma preocupação com a ação ou a performance –com a encenação correta e coordenação precisa entre movimento, música e fala - tem uma nítida prioridade sobre qualquer preocupação com a clareza, coerência ou consistência das explicações propostas (Lewis, 1980; Schieffelin, 1985; Jackson, 1989). Aqueles que participam dos rituais e, principalmente, aqueles que, no papel de doentes, são alvo direto das práticas aí desenvolvidas, não estão em busca de um bom argumento e seu engajamento no drama encenado tem muito pouco de trabalho mental.

A experiência de tratamento que se desenrola nos rituais apela diretamente ao corpo e não ao intelecto: em geral parece se desenrolar através de um envolvimento gradativo em contextos de som, movimento, cores e cheiros. Entretanto, isso não quer dizer que enquanto doentes ou meros espectadores de um ritual apenas reagimos aos vários estímulos a que somos submetidos ao longo da performance. As maneiras pelas quais respondemos a essas solicitações do meio são perpassadas por uma dimensão de sentido, i.e., já fazem parte de uma atividade interpretadora – a possibilidade de que venha a ser tocado ou movido em determinada direção pelo ritmo da música, os passos da dança, o jogo das cores, som e movimento, depende de que esses elementos já façam para mim parte de uma situação. É a essa situação – que nunca é soma de estímulos mas um certo modo de articulá-los – que respondo.

Assim ao invés de falarmos de respostas mecânicas a estímulos sensoriais para dar conta dos modos de envolvimento nos rituais é mais apropriado falarmos de processos imaginativos. Descrições densas das mais variadas composições de imagens nunca faltaram às etnografias de grupos ou movimentos religiosos; nem tampouco o reconhecimento da centralidade dessas composições na configuração da experiência religiosa dos membros (ver especialmente Fernandez, 1978, 1986). Nas performances imagens são combinadas para criar uma variedade de enquadres e inspirar na platéia uma profusão de reações: medo, terror, raiva, despreendimento, euforia, relaxamento. O sucesso do ritual, concluem muitos dos estudiosos, está em sua capacidade de “transportar” os presentes através dessa sucessão de enquadres e reações correspondentes (Levi-Strauss, 1967; Turner, 1967; Kapferer, 1979a; Fernandez, Myerhoff, 1990; E.Turner, 1992). Tratar dos processos imaginativos desenrolados durante os rituais é justamente dar conta dos modos pelos quais os participantes se envolvem e assumem enquanto seus os enquadres engendrados.

Sartre (1996) toma a imaginação como uma atividade de síntese que organiza vários elementos (um dado conjunto de formas, sombras, cores; poderíamos dizer também de movimentos, odores e/ou sons) em uma situação na qual o objeto representado se faz subitamente presente. Ao imaginar alguém, observa Sartre, imediatamente o tenho diante de mim. Não se trata de um trabalho intelectual: a imaginação não formula conceitos ou relações ideais; produz um senso de presença fundado nas qualidades sensíveis do objeto. A imagem de um ente amado que já faleceu suscita de imediato a dor da perda antes que um reconhecimento dos traços ideais do seu caráter e comportamento. Diferente da simples percepção, entretanto, a imaginação envolve uma criação contínua. Nela, diz Sartre, o elemento representativo “é atravessado de ponta a ponta por uma corrente de atividade criadora”(1996.: 30).

É, em grande medida, nesta atividade criadora que repousa a possibilidade de uma transformação da experiência. Uma das análises mais penetrantes de Sartre sobre a imaginação está em sua descrição de um espetáculo de personificação. De início, argumenta, enquanto espectadores, percebemos os elementos que compõem a cena e os tomamos como signos a ser interpretados: são elementos que remetem a categorias típicas de pessoas e ações. Como signos os traços pessoais do ator desaparecem para representar qualidades gerais. Aqui estamos no nível do pensamento abstrato; nos orientamos frente a uma situação típica e a interpretamos como uma cena de imitação, mas ainda não nos transportamos imaginativamente para o universo que ela delimita. É só quando nos vemos emocionalmente envolvidos que essa transposição se opera. No argumento de Sartre, a qualidade afetiva que ligamos ao objeto/personagem imitado logo transpõe-se para o ator: neste momento, frente a nós temos não mais um mímico que representa um personagem conhecido mas a presença mesma desse personagem invadindo a cena. É esse sentido afetivo “que realiza a união sintética dos diferentes signos, é ele que anima sua secura cristalizada, que lhe dá vida e uma certa espessura. É ele que, dando aos elementos isolados da imitação um sentido indefinível e a unidade de um objeto, pode passar pela verdadeira matéria intuitiva da consciência de imitação. Finalmente, o que contemplamos no corpo da imitadora é esse objeto como imagem: os signos reunidos por um sentido afetivo, isso é, a natureza expressiva.” (ibid.: 48-9).

Dois pontos importantes devem ser articulados ao argumento de Sartre se queremos compreender o papel da imaginação nos processos terapêuticos. Em primeiro lugar a imaginação se desenvolve em contextos que pressupõem processos de orientação mútua: repousa em um campo de significados compartilhados, abrindo nele e comunicando através dele certas possibilidades de ser. Isso só é possível – e esse é nosso segundo ponto - porque o sujeito da imaginação não é uma mente, consciência ou subjetividade soberana mas o sujeito/corpo da ação, engajado com outros em uma atividade - ritual - que é fundamentalmente pública. A imaginação é um modo de engajamento corporal no mundo e não um modo de consciência como o pretende Sartre. É uma compreensão lograda com os sentidos; de fato, com o campo unificado dos vários sentidos que é o corpo. Assim, conforme tem argumentado Csordas (1993; 1994), ainda estamos nos movendo em um universo analítico muito limitado quando associamos os processos imaginativos exclusivamente a visão (enquanto o sentido mais próximo do intelecto). A experiência daqueles que se submetem a tratamentos religiosos pode envolver imagens que não aquelas puramente visuais, em que domina qualquer um dos outros sentidos, ou mesmo combinações deles quando, por exemplo, à imagem tátil ou sensação da presença física de um personagem sagrado estão associadas, de forma solidária, imagens olfativas e auditivas (uma certa qualidade de odor e som relativos a personagem). É essa solidariedade entre os sentidos que permite que experiências imaginativas complexas sejam desencadeadas pela solicitação direta a um dos sentidos apenas. Não se trata aqui da comprovação de uma teoria empiricista da imaginação, que a reduz a experiências sensoriais, senão um caso em que tais experiências ganham uma nova dimensão a luz do contexto de significado em que emergem. Se em um ritual a sensação de uma mão pesando sobre o ombro vem acompanhada de certas sensações olfativas é porque ambas experiências sensoriais estão integradas em um contexto definido pela presença de um ente sagrado, portador de qualidades que elas ajudam a retratar.

Na imaginação produz-se um senso de sintonia entre corpo/sujeito e situação em que, por um lado, as sensações, estados de ânimo e intenções esboçadas pelo primeiro parecem emanar diretamente de uma situação preexistente, enquanto uma dada configuração de sentido, e, por outro, a própria situação parece refletir diretamente da perspectiva do sujeito. Estendendo esse argumento podemos dizer que a imaginação está bastante próxima do que Merleau Ponty (1994) descreveu como modo de compreensão em que a significação termina por devorar os signos, rompendo as fronteiras, características do pensamento intelectual, entre esses dois domínios. Ao descrever o espetáculo de personificação, que comentamos anteriormente, Sartre fala do advento de um estado híbrido em que o personagem representado e o ator ameaçam fundir-se aos olhos do espectador via a atividade imaginativa. Ao descrever como possessão este estado híbrido Sartre oferece-nos uma pista para interpretarmos, a partir do conceito de imaginação, as experiências de possessão encontradas e cultivadas em uma gama tão variada de rituais. É na possessão enquanto modalidade singular de imaginação que a fusão entre sujeito e situação, significação e signo, tende a se realizar mais plenamente. Aí a situação parece ser subitamente tragada para o domínio do corpo/sujeito - são sua voz, postura e movimento que definem e desenham o contexto da ação – ao mesmo tempo em que o domínio da subjetividade é invadido pela situação – afinal a possessão é sempre uma experiência de alheamento (total ou parcial) de si, em que o corpo confunde-se com um contexto definido (desde o exterior) pelo ser sagrado que o possui. Neste sentido, a possessão configura uma das modalidades imaginativas em que se produz de modo mais radical a reorientação do comportamento do sujeito segundo o enquadre proposto no ritual .

O conceito de imaginação nos permite encontrar uma mediação entre os contextos coletivos de ação delimitados pelo ritual e a constituição da experiência dos participantes nesses contextos. Na tentativa de integrar a análise dos enquadres a discussão sobre imaginação podemos levantar dois pontos importantes: 1) identificar os processos de transformação dos enquadres ao longo das performances aponta para os modos pelos quais o ritual pode reorientar o comportamento dos indivíduos, guiando-os através de marcos que possuem um sentido compartilhado; 2) recuperar a noção fenomenológica de imaginação conduz a uma revisão ou pelo menos um esclarecimento da idéia de esquema interpretativo subjacente a discussão de Goffman: o engajamento dos indivíduos nos enquadres propostos em um ritual não é orientado por uma atitude de conhecimento (conforme pode indicar a noção de esquema interpretativo) mas por envolvimento ou imersão na situação que é, em grande medida, logrado com os sentidos. Assim a eficácia da história que é tecida no ritual depende de que seu público possa a um só tempo encarnar o personagem e dar continuidade no cotidiano, também como narrador, a trama que foi apenas iniciada no mundo da prática religiosa.

Neste ponto já nos encontramos frente a questão das relações entre o contexto religioso do tratamento e o mundo da vida cotidiana. De certo modo todo tratamento religioso assim como toda forma de conversão religiosa visa inculcar um novo conjunto de hábitos no paciente/membro futuro (Bourdieu, 1977; B. Turner, 1984; Csordas, 1993), de tal forma que o projeto religioso (de homem são e/ou convertido) se torne um guia permanente para a vida cotidiana, sem precisar ser colocado intelectualmente. Conforme Geertz (1978) tem apontado, de todos os subsistemas culturais, a religião é especialmente equipada para promover a constituição e manutenção de hábitos, na medida que o regime de práticas que suporta é calçado (e legitimado) na relação com um cosmo sagrado. Igualmente importante, a religião provê o indivíduo/fiel com um grupo de referência que sustenta os significados e experiências construidos no contexto ritual, funcionando como uma audiência pronta a reforçar os novos comportamentos e identidades exibidos.

Embora pudéssemos levantar algumas das principais formulações desenvolvidas no âmbito da sociologia e antropologia da religião para compreender os processos de transformação da vida cotidiana desencadeados pela participação religiosa, dificilmente produziríamos uma análise que fosse capaz de dar conta da questão em toda sua complexidade. Aqui preferimos explorar apenas um ângulo do problema: aquele que diz respeito as passagens ou saltos que os membros de uma religião devem continuamente realizar entre o mundo da vida cotidiana e o mundo da participação religiosa, enquanto distintas províncias de sentido.

A partir de uma idéia inicial de W. James, Schutz (1973) argumenta que nossas experiências se desenrolam segundo diferentes e finitos âmbitos de sentido, cada qual com um acento de realidade próprio: o mundo dos sonhos, da arte, da fantasia, da ciência, da religião, da vida cotidiana. De todas estas províncias de sentido o mundo da vida cotidiana constitui para nós a realidade última ou paramétrica: este é o mundo dos objetos que me oferecem resistência e que tomo inquestionavelmente como real, o mundo intersubjetivo da comunicação e relação com outros e principalmente o mundo da ação, dominado pelo interesse prático. Segundo Schutz e Luckmann (1973) uma vez que cada uma dessas províncias de sentido encerra um senso próprio de realidade, a passagem de uma para outra não se dá sem uma sensação de um salto. Ora acontece então que o que era um problema enfrentado em uma dada província de sentido desaparece como problema quando ingresso em outra província: no exemplo dado por Schutz um drama que me aflige em sonho se dissolve quando passo para o estado de vigília, assim como uma questão que enfrento enquanto cientista é posta de lado quando vejo-me preso a tarefas do cotidiano. Da mesma forma, a experiência vivida no contexto de um ritual inevitavelmente perde a significação da qual se revestira quando retorno para casa e passo a me ocupar de obrigações relativas ao trabalho, cuidado com as crianças, etc. Entretanto embora o problema que me ocupara seja assim “neutralizado” quando salto para outra província, deixa, em certo sentido, um oco. Isso significa que posso ainda retomá-lo mas o farei a luz das estruturas de sentido próprias da província em que venho a me encontrar. Diz Schutz ao analisar o processo de explicitação de um sonho no âmbito do mundo cotidiano: “O oco deixado pelo problema do sonho se converteu, então, por assim dizer, em um enclave de um âmbito de realidade com estrutura de sentido totalmente diferente, enquanto foi preenchido por um novo problema: ‘Que significa o sonho?’ Tais enclaves pertencem, em certo aspecto, aos dois âmbitos de realidade. Se situam em um deles e se relacionam com o outro” (Schutz e Luckmann, 1973: 134).

As experiências de ser montado por um orixá, habitado pelo Espírito Santo ou de entrar em sintonia com a energia de outros espíritos têm seu sentido definido em um âmbito de realidade bastante próprio: o âmbito da religião. Quando seus protagonistas (re)ingressam no mundo da vida cotidiana sentem que tais experiências perdem a força e profundidade da qual se revestiram quando vividas no ritual, não há como sustentá-las integralmente fora do âmbito de realidade do qual fazem parte; para muitos resta a sensação de que se tratam de experiências incomunicáveis nos termos da linguagem ordinária. Apesar disso a referência a estas experiências reaparece continuamente no cotidiano: elas são aludidas, descritas, comentadas, avaliadas; objeto de boas risadas ou matéria de discussão e disputa séria em torno do seu significado; base legitimadora para certas demandas e papéis ou fonte para a criação de novos laços. Em larga medida, todas essas ações são logradas através de narrativas – sejam histórias formais para a instrução de uma platéia silenciosa, sejam relatos elaborados coletivamente no contexto de conversas ordinárias.

Através dessas narrativas, a abertura que a experiência religiosa cava no cotidiano é preenchida por questões próprias desse domínio de realidade, interconectada com ações, projetos e interesses que comprazem a vida cotidiana. O efeito disso não é apenas remodelar a experiência religiosa segundo as estruturas de sentido do mundo do senso comum mas permitir que a experiência religiosa venha a servir de guia a ação cotidiana. Afinal as histórias contadas sobre experiências vividas no universo religioso conectam narrativas exemplares tecidas nos mitos e encenadas nos rituais a esfera dos dramas e preocupações diários, fornecendo assim pistas para um exploração ativa do contexto da vida cotidiana.

Vejamos agora como esses pontos podem ajudar-nos a entender experiências de doença e tratamento no candomblé, pentecostalismo e espiritismo.



O candomblé

O candomblé é uma religião fundamentada na busca do encontro com o sagrado via o fenômeno da possessão. É uma religião fortemente marcada por rituais. É na prática ritual que o fiel se familiariza com a cosmologia e aprende seu lugar em uma rede complexa de relações entre o divino e o profano. O ritual busca restabelecer a unidade perdida entre o aiê, o mundo físico, a terra e o e orun, o mundo sobrenatural das entidades divinas ou orixás.

Operando um movimento contrário ao do ritual – que busca reconstruir a antiga ligação entre o aiê e o orum - a doença aparece, na maioria das vezes, como sinal de uma “falta” de ligação, de uma desordem nas relações do indivíduo com o sagrado. Embora estas relações não representem necessariamente a causa direta da aflição, constituem o pano de fundo a partir do qual tanto pode se delinear um quadro de vulnerabilidade quanto pode ser (re)construído um estado de proteção, segurança ou equilíbrio.

Na perspectiva de muitos membros do candomblé as causas das doenças podem ser físicas/materiais ou espirituais – das quais se ocupam preferencialmente os terapeutas religiosos. Na prática os dois tipos de causa tendem a combinar-se. Conforme observa Teixeira, no candomblé, a doença nunca é vista como mera manifestação física mas “comporta sempre uma dimensão mágico religiosa” (1996: 11). Assim embora também tratem de sintomas físicos com o uso de um amplo receituário de ervas medicinais, pais e mães de santo nunca agem apenas sobre a dimensão física da doença. A partir de análise feita por Bárbara (1998) podemos agrupar as causas de natureza mágico-religiosa segundo cinco situações típicas:

1. A doença pode ser um pedido da divindade para ser propriamente assentada. Conforme os relatos dos membros, as vezes aparecem doenças que a medicina oficial não logra curar e que somem com o ingresso efetivo do doente no culto, i.e. com a iniciação na religião. A loucura é uma das formas em que se dá o chamamento do santo e para alguns está diretamente relacionada a orixás específicos. Entre estes fala-se de Iemanjá, porque rege a cabeça, de Oxossi, devido a sua ligação com o mato e, portanto, com uma esfera de liminaridade ; de Iansã, (devido a sua personalidade tensa e inquieta e a qual provavelmente se associa a quentura que os loucos sentem na cabeça e no corpo) e ainda, bastante significativo, de Omulu ou Obaluaê. Este último é a divindade da varíola, das doenças de pele e enfermidades contagiosas em geral mas também relaciona-se com a epilepsia (considerada popularmente como contagiosa).
2. A doença pode estar relacionada a um descaso do fiel para com o santo e o terreiro, a um não cumprimento das obrigações que, mediante a iniciação, ligam a pessoa ao seu orixá e ao espaço sagrado em que este está assentado. Alguns membros acreditam que quando relegado, o orixá castiga trazendo o infortúnio, outros dizem apenas que se afasta, deixando seu filho só e sem proteção.
3. A doença pode também resultar do “assentamento do santo errado”, quando na iniciação não é assentado o orixá que de fato é dono da cabeça do noviço, mas um outro. A feitura do santo errado pode significar tanto a incompetência da mãe ou pai de santo, que não soube ver nos búzios a identidade do orixá que rege a cabeça do consulente (alguns dizem que há orixás que se escondem atrás de outros e cuja identificação, por essa razão, é bastante dificultada) quanto uma intenção por parte do especialista religioso de prejudicar o fiel. Em todo caso dá origem a um estado de desequilíbrio e conflito a nível da própria da identidade, que tem consequências desastrosas.
4. Também os espíritos dos mortos ou eguns podem provocar a doença. Quando a pessoa é carregada da energia de um egum diz-se que está sofrendo de encosto.
5. Em muitos casos a aflição não resulta do desígnio direto de uma entidade sagrada mas da ação maléfica de outros. A ação de outras pessoas pode envolver a manipulação de recursos sobrenaturais (com ou sem auxílio de um especialista religioso), o feitiço, ou simplesmente ser resultado de olho grosso, a capacidade que têm certas pessoas de passar influências negativas através do olhar. Embora, no caso do feitiço, ocorra a intervenção de entidades ou poderes sagrados, esta é colocada a serviço da intenção de um ser humano de fazer mal a outrem.

Na origem de toda doença – não importa qual seja sua causa mais imediata - estão situações de vulnerabilidade. Estas indicam que o corpo está aberto, podendo perder axé, energia vital, e receber energias negativas. Conforme já observado o estado de corpo aberto remonta a um desequilíbrio ou ruptura nas relações entre o indivíduo e as entidades ou forças sagradas. A revelação das causas se dá através da divinação, no encontro privado da mãe de santo com o cliente para o jogo de búzios. O tratamento pode comportar desde a utilização de remédios a base de plantas até a iniciação mesma na religião.

Compreender o contexto que conduz a doença e a saúde requer compreender as relações entre o humano e o divino estabelecidas na religião, no cotidiano do terreiro e nos contextos rituais. No candomblé considera-se que cada indivíduo pertence a um orixá que é dono da sua cabeça. Os orixás cultuados em um terreiro correspondem a modelos gerais, cada qual associado a certos elementos da natureza, a cores, dias e sacrifícios, e possuidor de certos traços de personalidade, conforme se pode ver através dos seus mitos. Este modelo geral se diferencia segundo um conjunto de qualidades específicas de orixá, que “são partes ou segmentos da sua própria biografia mítica ou representações de locais em que nessa forma foi ou é cultuado”(Prandi, 1991: 123). Além disso o orixá ou qualidade de orixá se desdobra no orixá específico da pessoa, único e intransferível e que é fixado na cabeça ou ori. O orixá é uma energia, não é visto - o que é visto é o orixá particular de cada pessoa. Este é o único a possuir um erê - qualidade infantil do orixá. O erê, diferente do orixá, é falador e brincalhão como uma criança e frequentemente apronta confusões no cotidiano do terreiro. Na iniciação os noviços são mantidos em estado de erê, que é um transe incompleto, e é assim que aprendem os toques, danças e segredos do candomblé. Além do orixá dono da sua cabeça a pessoa é composta por outros orixás que devem ser assentados em uma série rituais realizados de acordo com o tempo de iniciação na religião. Destes destacam-se o segundo, juntó e o terceiro, adjuntó.

As alianças com os orixás são construídas e reforçadas pela construção de alianças ao interior do terreiro. Aí domina uma hierarquia rígida que, em um primeiro nível, separa os recém-ingressos, ainda novos no santo, daqueles que já são antigos na seita: nas festas são muitos os momentos de reverência a mãe de santo, que para os mais novos envolve arrastar-se ao chão para pedir bênção. Essa hierarquia segue um princípio bastante conhecido de todos: aquele que opera no modelo da família. Como a família, o terreiro acolhe, protege, produz alimento e dá de comer a todos – a cozinha é de fato espaço central em qualquer casa de candomblé – mas o faz segundo uma hierarquia de respeito e subordinação, que se desdobra e segmenta em vários níveis. No cotidiano do terreiro, há sempre um vai e vem de mulheres atarefadas, roupas brancas estendidas ou a passar, trabalho duro na cozinha, preparação para festas e obrigações, tudo se desenrolando sob a vigília da mãe ou pai de santo. Não raro a pessoa em aflição é acolhida nessa dinâmica da casa, passando alguns dias no terreiro e engajando-se em um cotidiano de trabalho, conversa, fofoca, vai e vem de gente. É no contexto dessas relações na família que vão sendo assentados os laços entre o fiel e os orixás.

No candomblé o filho de santo é tido como multiplicidade construída com a ajuda dos orixás (Augras, 1983; Goldman, 1987). É no contexto de uma série de rituais que a construção da pessoa se opera. A iniciação é momento crítico e fundador desse processo; aí o fiel é retirado do mundo das ações e certezas do cotidiano, recolhido na camarinha para aprender os modos de ser da religião. A camarinha é local de sofrimento e provação, fundamentais para que o fiel possa renascer enquanto filho de um determinado orixá. Boa parte do tempo em que permanece na camarinha o noviço é mantido em estado de erê. É como criança que vai sendo introduzido aos ritmos e passos do seu santo. Alguns autores têm apontado para a importância central do som no processo de identificação com o santo, que ocorre na iniciação (Segato, 1995; Barbara, 1998). Podemos dizer que para o fiel o toque do orixá passa a delinear uma situação que é gradativamente aderida ou anexada ao seu corpo: é a esse toque que irá responder nas cerimônias sagradas, através de um engajamento imaginativo que ultrapassa os limites de uma experiência sensorial auto-contida e que, ao invés, envolve o corpo como um todo. É assim que irá vivenciar a possessão.

A possessão envolve uma mudança radical no corpo, que passa a ser ocupado pelo orixá. É principalmente através da dança que o orixá se manifesta, que a possessão o modela no corpo. Na experiência do filho(a)-de-santo a música e a dança estão intimamente ligadas. A dança expressa as características do orixá, conta elementos de sua história (Bastide, 1973; Augras, 1983; Segato, 1995): “a figura humana, tremendo, tem sua postura transformada de acordo com o orixá que toma conta dela: adquire para os orixás femininos da água, Iemanjá e Oxum, uma postura “mais redonda”, no sentido que os cotovelos são alargados a altura do busto que é levemente dobrado para o baixo; para os orixás guerreiros, Ogum e Xangô, exibe uma postura mais reta; para as divindades mais jovens, Ogum, Oxossi e Iansã, volta-se mais para o céu, enquanto para as divindades velhas, Nana e Obaluaê, aparece mais dobrado para o chão.” (Barbara, 1998)

A experiência da possessão, expressa na dança, é assim modulada segundo as características do orixá. Estes, entretanto, não são as únicas entidades que descendem sobre os corpos dos fiéis. Conforme observamos existem os erês, entidades infantis, brincalhonas e desordeiras, que ainda não foram socializadas. Externos ao universo das religiões africanas existem também os caboclos, espíritos nacionais que se dividem segundo as classes dos índios e boiadeiros. Orixás e caboclos diferem bastante em sua maneira de se comportar e relacionar com o mundo humano: enquanto os primeiros são altivos e distantes, comunicando-se primordialmente através da dança (e portanto da música que reproduz sua identidade sonora particular), os caboclos são mais próximos, conversam, dão conselhos; no geral, gostam de beber, fumar e, muitas vezes também, de tomar conta dos corpos de seus carnais de forma violenta e descontrolada. Há similaridades importantes entre caboclos e erês: ambos expressam a dimensão do carnavalesco, da ruptura com as fronteiras rígidas via o humor e da substituição da formalidade e distância pelos riscos e incertezas advindos das relações entre próximos (Wafer, 1991). Estas diferenças são vividas pelos fiéis também enquanto experiências de possessão bastante distintas. Em quase todos os terreiros há festas próprias para os caboclos e em muitos ritos, após os orixás, canta-se para esta classe de espíritos nacionais. Segundo alguns adeptos do candomblé, quando os caboclos “descem” mantêm seus carnais durante certo tempo em estado de semi-consciência: ao mesmo tempo incapazes de controlar o corpo – que os caboclos gostam de jogar e manipular com certa dose de violência – mas de certo modo ainda capazes de assistir enquanto espectadores a esse movimento e de sentir ou sofrer as sensações – muitas vezes de dor – que provoca. A possessão pelo orixá, ao contrário, implica, ao menos enquanto ideal, perda total de consciência.

Ao adentrar o mundo do candomblé o fiel passa a experimentar nos rituais possibilidades novas e diferentes de ser que pode descobrir e explorar a cada nova performance. Diz Prandi: “na iniciação (...) o filho-de-santo deixa modelarem-se os seus eus sagrados, cuja validade social, no entanto, só faz sentido dentro do grupo religioso. Ao integrar-se no grupo, seu eu social passa, por conseguinte a contar com uma enriquecedora expansão, através do processo ritual de multiplicação e justaposição dos eus sagrados” (1991: 182). Para os fiéis as performances não apenas recriam ou reativam o tempo mítico mas passam a fazer parte, elas mesmas, de uma história. Esta é a história em que gradativamente se revelam particularidades do orixá ou do caboclo de cada um – um modo próprio e singular de dançar e, no caso dos caboclos também de comunicar-se, de expressar e desenvolver preferências frente à platéia – e em que se mostram diferentes momentos ou fases na relação das entidades com seus carnais. Tais momentos podem ser regidos por um calendário religioso, como os ritos de assentamento de santo realizados aproximadamente de acordo com o tempo de iniciação do fiel ou podem simplesmente indicar uma situação particular nas relações do fiel com a entidade (como nos casos em que uma possessão muito violenta é sinalizadora do não cumprimento de obrigações rituais). Essa história que é construída nas performances e que as revela de acordo com uma sequência muitas vezes se expande para além do ritual, povoando a vida do terreiro. Assim caboclos, erês e mesmo orixás vez ou outra misturam-se ao cotidiano da família de santo, trazendo revelações, operando façanhas ou simplesmente dando o ar de sua graça. Da mesma forma também expande-se para o mundo privado dos sonhos, em que as entidades mostram aos seus fiéis novas facetas de sua personalidade, mandam avisos e revelam vontades a cumprir. Conforme Segato (1995) a valorização dos sonhos no candomblé cumpre uma dupla função: por um lado permite que o sonho possa enriquecer – e assim reavivar – o mito, sinalizando para características do orixá particular; por outro permite que o mito venha a integrar a própria identidade.

Em seguida passamos a uma rápida apresentação de uma história de doença e tratamento ao interior do candomblé

A história de Ritinha
Moradora de um bairro pobre de Salvador, Ritinha tem dois filhos pequenos que vivem com ela e o pai, seu atual companheiro. Tem 28 anos, é negra e robusta; em geral extrovertida e bem humorada. Como ele mesma reconhece tem um temperamento forte e não leva desaforo para casa. Quando adolescente esteve internada em um hospital psiquiátrico, tida como maluca. Hoje em dia, pertencente ao terreiro de João Luís, está ingressando, ela mesma, na carreira de mãe de santo. Seu caboclo, Boaideiro dá consulta e faz trabalhos e Ritinha já promoveu duas sessões de caboclo em sua casa. Está juntando dinheiro e contribuições para comprar os atabaques próprios do candomblé.

Ritinha cresceu no meio do candomblé: sua mãe era filha de santo e frequentadora ativa de um terreiro no bairro. Quando esta morre, Ritinha, ainda menina, vai morar com uma tia pentecostal. Logo começa a ter ataques, que as pessoas dizem ser epilepsia. As crises tornaram-se frequentes, com estertores e enrijecimento físico, sem que ninguém identificasse sua origem – os exames médicos não confirmam o diagnóstico de epilepsia. Para sua tia trata-se de “coisa do diabo”, manifestação que ela combate espancando a sobrinha para expulsar o demônio.

As crises aos poucos impedem Ritinha de trabalhar: não consegue manter-se em nenhum emprego. Nessa trajetória cada vez mais pessoas concordam com a hipótese de loucura: “Aí quando eu comecei a trabalhá no salão, eu ia, ficava muito bem fazendo as unhas das, das cliente daqui a pouco não via mais nada. Aí o povo me dizia que era, que eu... ficava feito louca, me lascava toda... que me jogava pelo chão... e e ...ia em cima dos outros, isso eu fiquei, ... dois meses, dois meses fazendo isso. Aí, fiquei dois meses trabalhando lá, assim nessa maluquice, tendo essa... Aí depois ela (a dona do salão) disse que eu tinha poblema mental, que eu não podia ir mais trabalhá lá”. Para por fim ao problema a tia decide interná-la, sem o conhecimento da família. Então, Ritinha tem apenas 15 anos.

É devido a interferência de seu pai que Ritinha termina por receber alta do hospital, após uma semana de internamento. Este consulta José Lins, atual pai de santo de Ritinha e fica sabendo que ela está internada em um hospital psiquiátrico embora seu problema seja de santo. Logo após sua alta, Ritinha é levada a alguns candomblés grandes e prestigiosos da Bahia mas, frustando as expectativas do pai, não dá santo em nenhum deles. É no candomblé de José Lins, terreiro do bairro, relativamente pequeno e sem grande fama, que ela vem a manisfestar. Conforme conta, bolou em uma festa e só acordou três meses depois, já iniciada. “Quando ele (o pai) me troxe aí na casa de José é foi que eu bolei , não levantei mais. Só levantei depois de três meses de raspada. (...). Aí, fez o santo... porque aí... desse tempo pra cá não tive mais maluquice, a maluquice passô”.

O candomblé produz um re-enquadramento da experiência de aflição vivida por Ritinha: trata-se de chamado de santo. Ritinha é filha de Obaluaê, o orixá que retém o poder da doença e da cura. Mais comumente relacionado a doenças de pele – Obaluaê tem o corpo coberto de chagas, é conhecido como o deus da varíola – ele é também identificado com ataques epilépticos, que alguns pais e mães de santo consideram como uma doença típica de Omolu/Obaluaê (Caprara, 1998). Caracterizada por movimentos espasmódicos a dança desse orixá parece elaborar a analogia com o ataque epiléptico: mais que estabelecer uma associação lógica entre a realidade sagrada e a realidade médica, entretanto, opera enquanto metáfora encarnada transformando os termos da analogia e modificando radicalmente a experiência da aflição.

Os ataques de Ritinha traem sua ligação com Obaluaê: no contexto ritual são transformados quando calçados no modo de expressão típico desse orixá. A iniciação, entretanto, não estabelece para Ritinha uma relação de perfeita identificação com seu santo. Este, diz ela, é um orixá fechado, raramente responde as perguntas que o pai de santo lhe faz no jogo de búzios. Mas já lhe apareceu em sonho, dando aviso e procurando intervir positivamente no seu futuro. “Eu sempre sonhei com ele assim, velho, alto, negro quando eu sonhava com ele era assim... sem dente, todo ferido...”. Ritinha responsabiliza seu Obaluaê pelos momentos de depressão, em que se isola e põe-se a chorar sem uma razão definida.

O juntó de Ritinha é Oxum. Este orixá caracteriza-se por ser símbolo do poder feminino e da gestação, uma grande mãe suave, sensual e também uma corajosa guerreira. Essas características não são muito próprias a Ritinha, que está longe de encarnar um modelo feminino e sensual. Toda essa distância entre Ritinha e Oxum, pode ser percebida na sua relação com o orixá. Ritinha fala abertamente que não gosta muito de pessoas de Oxum, pois as considera falsas. Além disso, diz que não gosta de receber sua Oxum, que chora muito antes de ser possuída por essa divindade. Nas festas de José Lins, quando se canta para Oxum, Ritinha se contorce e bate na própria cabeça antes de entrar em transe, para não ser possuída por essa divindade. Diz ela: “eu não gosto de tá dando santo... Eu não gosto. Não sei se você já reparou, aí na roça todo mundo dá tudo, todo mundo dá tudo primeiro e você me vê sempre mais... recuada. Eu não gosto, é uma coisa... É uma coisa que já vem de mim. Essa Oxum minha, eu tenho uma Oxum no meu juntó, pra eu dá essa Oxum, eu choro tanto.... Parece que tem um negócio que me abafa, eu choro tanto, que eu não quero dá... é uma coisa que eu me prendo pra não dá e quando eu não guento mais é que me pega, que eu choro, acho que eu gasto todas as lágrimas que eu tenho... dos meus olhos.(...) É antes dela me pegá, é... eu fico assim. Então, acho que ele (Obaluaê) é exatamente igual a mim, não tem, não tem... não qué muita conversa”.

Ritinha tem uma relação bastante próxima com seu caboclo Boiadeiro, relação que apresenta-se, na maioria das vezes, com um razoável nível de tensão. Ao tempo em que é a entidade que mais lhe inflige castigos Boiadeiro é também um provedor importante, muitas vezes sua única fonte para o pão de cada dia. “Esse caboclo mermo, se eu pudesse não dava mais ele. [Você não gosta dele, é?] Não, eu gosto, porque hoje em dia quem tá me dando o pão do... de cada dia dos meus filho, praticamente é ele. É. Porque as vezes eu tô aqui calada... num vem com muito não, mas ói... seu... aqui ói trouxe aqui esse dinheiro que seu caboclo mandou... pra comprá uma vela pra ele. Aí eu compro uma vela e sempre sobra da vela, eu já compro o leite de meus filhos, tá entendendo? Então muita coisa eu arrelevo dele por causa disso. Mas ele não é dos meus... porque eu queria que ele não viesse assim...e ficasse assim... anos sem vim, mas não, bate na pia, bate na lata... ele tá lá, que ele gosta de... (fulia) é com ele mermo, ele tá ali, entendeu?”

A dimensão vivida da possessão guarda uma “qualidade” própria que Ritinha descreve a luz de uma metáfora retirada do domínio das relações amorosas: “E isso me faz mal, eu não gosto, não me sinto bem. [Você sente como quando ele (o caboclo) sai?] Me sinto assim... vazia. É isso, porque é assim... até eu aceitá ele, do jeito que ele é, vai ser assim... Sinto um vazio. Vô dizê: você gosta de um rapaz... [Certo.] Aí cê com aquele rapaz, transa com aquele rapaz, aí quando você tá ali com ele, você... tá se sentindo forte, né? Quando ele sai você se sente assim... só, se sente assim abandona, se sente assim vazia... É assim que eu me sinto, quando esse caboclo vai embora, é assim que eu me sinto”.

Os problemas na vida de Ritinha não acabam com a iniciação. Pouco tempo depois de iniciada ela começa a namorar um rapaz e se casa. O marido impõe-lhe sérias restrições no que toca a sua atividade no terreiro. Certa vez resolveu participar de uma festa na roça de José Lins, aproveitando a ausência do marido que estava viajando a trabalho. Mas ele sente-se mal nesse dia e volta para casa antes do esperado. Ritinha é avisada do seu regresso por uma vizinha mas o santo de José Lins a proíbe de deixar o terreiro até que sejam concluídas as festividades. Ritinha permanece “virada” de erê durante os três dias da festa. Retornando a sua casa, é surrada pelo marido.

Quando procura afastar-se do candomblé é a vez do santo lhe surrar. Um dos seus conflitos com o candomblé – e foram muitos - lhe traz consequências desastrosas. Ritinha conta que não queria mais ficar metida na seita mas não conseguia se desvencilhar. Ia ao candomblé, mesmo quando não queria. Certa vez, tinha uma festa para ir na rua e tinha também uma festa no terreiro de José Lins. Ela decide ir a primeira mas no caminho é possuída por Boiadeiro. Este a leva para o mato, faz com que rasgue sua roupa e se cubra de folha de cansanção. “Eu disse que não ia pra sessão, que eu ia sair, que não ia pra porra de sessão nenhuma, me lembro minhas palavras. Não vi mais nada. Daí apanhei, disse que ele [o caboclo] foi pro mato, chegou nas, nos mato tinha uma ruma de cansanção, oxente, disse que tirou minha roupa toda, fiquei só de calçola e sutiã. Diz que ele passou a ruma de cansanção na... aqui por debaixo (em baixo do braço), do lado de cá, por dentro das perna, dentro da calcinha, no meio das pernas... fez uma roupa, de cansanção. Meu rosto era isso aqui (coloca as mão próximas ao rosto indicando o quanto estava inchado) Inchado. E ficou por lá por dentro das matas, até a hora de começá o candomblé. (...)Dali até aí na roça apanhando.” .É assim que chega ao terreiro para experimentar ainda mais sofrimento. O caboclo lhe dá uma chimba (surra), lançando-a violentamente contra o chão e fazendo-a bater a cabeça contra a parede. Algumas de suas irmãs de santo, comovidas e chocadas, lançam-se aos pés de João Luís, chorando, para que ele interrompa o transe. O pai de santo permanece inflexível, o castigo é merecido. “E o pió é quando ele deixa a gente assim lúcida, sabe? Porque ele vai batendo e... bate e vai embora pra gente senti a dor. E depois volta de novo pra bater novamente, entendeu?” No final da festa o estado de Ritinha é tão lastimável que José Lins decide mantê-la virada no erê, para que possa se recuperar sem muita dor. Ela termina por se separar do marido e desiste de lutar contra seu destino no candomblé.

Ritinha relaciona os acontecimentos de sua vida com o santo. Não consegue se manter num emprego por mais de um ano pois sempre acontece algo que a tira do trabalho. Diz que essa é a vontade do santo que não quer que ela trabalhe para os outros, mas para ele. Conversando conosco no início do ano Ritinha explica que tem um cargo de mãe de santo, que precisa assumir. Com o tempo passa a investir seriamente nesse projeto no candomblé. Começa a dar consulta, jogar os búzios para clientes eventuais e fazer trabalhos de limpeza. Em geral trabalha com Boiadeiro. É assistida nesse empreendimento por uma amiga, Marina, que mora no bairro e que se diz madrinha do caboclo. É Marina quem agencia tudo quando Ritinha está virada. Ritinha reclama que Boiadeiro ainda não lhe permite cobrar dos clientes: é parte de sua missão passar um tempo atendendo de graça. Entretanto, sempre entra um agrado dos clientes satisfeitos, o que lhe permite comprar material para a sessão (charutos, perfume, etc) também reservar algo para sua casa e filhos. Boiadeiro não cobra mas pede cerveja: ele e Marina são capazes de tomar todo um engradado após a realização de um serviço. Ritinha reclama que o caboclo e sua amiga se divertem bebendo e não sobra nada para ela.

Os modos de Boiadeiro são, em grande medida, discrepantes, do comportamento esperado de uma mãe de família. Além de apreciador de farra e bebida, o caboclo não demonstra afetividade para com as crianças de Ritinha; ao contrário as suas traquinagens tiram-lhe do sério. Certa vez, irritado com a presença de um dos garotos que atrapalhava a consulta, Boiadeiro deu-lhe um tapa tão forte que o lançou para o outro lado da sala.

Em abril Ritinha dá a primeira sessão em sua própria casa, bastante pequena e ainda em construção. Apesar da improvisação – o teto da casa é lona que não retém a forte chuva da noite, na falta de atabaque improvisa-se com um balde de plástico - corre tudo bem. Segundo Ritinha só veio gente séria, não teve “baixaria”. O próprio José Lins comparece. A sessão acaba cedo mas Boiadeiro continua bebendo até de manhã com Ana Maria e alguns outros. A segunda sessão ocorre em maio, já mais organizada em termos de infra-estrutura material. A pequena sala enche de gente, em sua maioria mulheres. O evento é considerado bem sucedido. A realização de uma próxima sessão é colocada na dependência de Ritinha angariar contribuições suficientes para comprar os tambores.

O Boaideiro de Ritinha não é apenas um personagem mítico de uma história individual, privada. Faz parte do cotidiano e da história de muita gente em cuja vida participa como conselheiro, paquerador e mesmo companheiro de farra. Muitas das mulheres tem casos a contar sobre Boiadeiro, e já estabeleceram com ele uma relação que aparentemente não necessita da mediação ou intervenção de Ritinha. Também é assim com Soldadinho, o erê que Ritinha incorpora. Como todo erê ele é criança buliçosa, traquina, desrespeitosa e gozadora da autoridade, mas capaz de grandes feitos. Soldadinho ganha presentes de Ana Maria, guloseimas que adora, como recompensa pelo sucesso que lhe proporciona nos seus empreendimentos. Apronta peças no candomblé de João Luís e demonstra verdadeiro horror aos homossexuais que pertencem ao terreiro. A relação de Ritinha com essas entidades parece proporcionar-lhe acesso a um conjunto variado de experiências e relações sociais, a partir dos quais sua vida se compõe e recompõe enquanto teia de múltiplos caminhos e possibilidades.


O pentecostalismo da Igreja Deus é Amor

O pentecostalismo é um movimento próprio ao interior do protestantismo que ressalta a experiência única e transformadora do Espírito Santo na vida dos fiéis. O pentecostalismo da Igreja Deus é Amor - fundada por David Miranda, em 1960 em São Paulo - representa a Segunda fase do movimento pentecostal no Brasil e é marcado por uma doutrina pautada na observação de princípios morais bastante rígidos.

Para os pentecostais muitas doenças tem causas espirituais, resultam da influência do mal, que pode ser tomada como ameaça e mesmo invasão do corpo por entidades demoníacas. É possível que tais influências maléficas sejam desengatadas pela ação outros - via feitiçaria ou mesmo pelo olho grosso. Entretanto na produção da doença está usualmente em jogo um estado de vulnerabilidade: um certo modo de vida que contraria ou se afasta dos princípios divinos. A enfermidade é, neste sentido, apenas mais um elemento que compõe um quadro de geral de pecado e falha moral ou também poderá ser compreendida como uma prova imposta por Deus para testar os crentes.

Aqui é preciso compreendermos melhor a visão de mundo pentecostal. Em primeiro lugar esta se assenta sobre uma oposição rígida entre bem e mal; tratam-se, em última instância, de planos descontínuos e irreconciliáveis. O indivíduo só compartilha do poder sagrado ao se aliar definitivamente ao plano do bem (Brandão, 1980; Fernandes, 1982). A igreja oferece um espaço alternativo que deve substituir os “prazeres do mundo” pelo prazer das práticas e celebrações religiosas, em que são cultivados os dons do Espírito Santo. Visa constituir-se, assim, em um sub-universo de ordem contraposto ao meio circundante. Muitas das igrejas pentecostais constituem verdadeiras comunidades, marcadas por relações próximas e difusas entre pessoas que se conhecem. Os laços que a prática religiosa sela entre os fiéis são descritos em termos de parentesco: os membros batizados são irmãos. Estes laços podem vir a ser bastante fortes, constituindo uma teia de relações que ultrapassa o âmbito da igreja. O modelo do parentesco entretanto é transformado segundo regras do universo burocrático: os fiéis batizados têm carteira de membro e pagam o dízimo. A igreja conta com a colaborações de alguns membros se que encarregam do trabalho geral de organização e administração do espaço, bem como de assistência aos demais fiéis: estes não são apenas irmãos, mas obreiros e obreiras.

No contexto da religião, a passagem da aflição à cura, é movimento através de um espaço ético: libertar-se da doença é deixar o plano do mal e transportar-se para o universo ordenado dos fiéis. Essa é a dinâmica da conversão que ergue-se enquanto momento de mudança profunda na vida. Curar assim não é apenas expulsar demônios – embora por vezes implique na prática do exorcismo (bastante valorizada em igrejas como a Universal). É parte de um projeto de mais amplo de libertação que envolve uma reorientação da vida segundo os princípios da fé. A cura da enfermidade é uma graça concedida por Deus, um sinal de que é preciso e possível mudar, um aviso de que a mudança requer uma vigília contínua sobre o comportamento e, portanto, sobre o corpo. Este deve ser fortalecido para cumprir seu papel de templo do espírito.

Entre os pentecostais o crente é entendido enquanto vetor para a ação do Espírito Santo, tornando-se uma espécie de “locus” e agente do divino. De uma maneira geral, na cosmovisão protestante, já encontramos a idéia de que os fiéis são habitados pela divindade, de que o corpo de um crente é uma espécie de morada do Senhor. Em uma passagem do Novo Testamento - muito usada nos cultos pentecostais - Lucas diz: “Mas o Altíssimo não habita em templos feitos por mãos de homens” (Atos 7:47) e “Ou não sabeis que os nossos corpos são santuários do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus” (I Cor 6:9). No contexto pentecostal esta idéia adquiriu um sentido bastante radical. Para o pentecostal ser habitado pela divindade significa poder ser usado por Deus a qualquer momento para a manifestação do seu poder.

Significa também que uma das mais importantes ocupações do crente é zelar do corpo para fazer dele um templo em que o Espírito Santo possa habitar. É preciso cuidar da habitação. O cuidado do corpo, entretanto, não é definido em termos do que ordinariamente chamamos de práticas em saúde: é antes um empreendimento moral. Deste empreendimento advém um estado de força e proteção que se faz sentir por todas as dimensões da vida e que é fonte de saúde, prosperidade, harmonia nas relações familiares, sucesso e bem estar no trabalho, etc..

Para os pentecostais o Espírito Santo possui uma dimensão real, concreta; age em seus corpos. É comum a referência nos cultos ao livro de Atos dos Apóstolos, capítulo dois. Aí se lê que a descida do céu do Espírito se faz acompanhar por um conjunto de sinais sensíveis: ouve-se um som, como de um vento impetuoso, línguas são faladas como fogo, o Espírito pousa sobre os corpos das pessoas. O recebimento do Espírito Santo é um ritual de mistério. A descrição feita sobre o pentecostes nos Atos dos Apóstolos indica que as pessoas que passavam não podiam entender o que estava acontecendo com os apóstolos e muitos pentecostais aludem a essa dimensão de mistério quando indagados sobre a presença do Espírito Santo em seus corpos: “Sobre o Espírito Santo de Deus, minha filha, o mundo não pode entender”, “O Espírito Santo é um mistério muito grande”; “Deus só revelou isso ao pobres e escondeu dos poderosos”.

A presença ativa do Espírito Santo é fortemente cultivada em igrejas como a Deus É Amor. Construída ritualmente se desdobra através de um conjunto de enquadres que infundem com poder divino os corpos dos fiéis e os modelam segundo a dinâmica deste poder. É preciso analisar melhor esses enquadres se queremos compreender como o ritual busca atuar sobre a experiência dos participantes. A estrutura do culto na igreja pentecostal Deus é Amor segue fases que convém analisarmos mais detidamente.

A fase de “oração” é o momento em que o culto cresce em dinâmica e que envolve com maior intensidade os fiéis. Ela é constituída basicamente de orações individualizadas mas que seguem frases repetidas e prontas que pedem a “vitória” e as “bençãos de Deus”. É nesta fase que se observa um maior envolvimento dos fiéis. As orações iniciam-se em um tom mais baixo que vai crescendo e tomando conta do ambiente. As mulheres oram ajoelhadas ou de pé, muitas vezes segurando carteiras de trabalho, fotos, exames médicos. O pastor ou o obreiro/a que está no púlpito, profere sua própria oração: suas palavras a princípio claras vão aos poucos confundindo-se, até que se distingue apenas um ritmo acelerado que atinge seu ápice quando novamente se destacam palavras como Glória a Deus, Obrigado Jesus. Estas logo voltam a se esvanecer sob o fundo de muitas vozes. O efeito dessa sobreposição de vozes e orações é, em primeiro lugar, criar um espaço totalmente preenchido pelo poder divino; uma onda de poder que se alastra e não deixa nada nem ninguém intocado. Mas é também de apresentar esse poder como multiplicando-se e singularizando-se em cada um, fazendo de cada corpo uma morada.

Quando a profusão de vozes se confunde e entrelaça em um ritmo acelerado, chegamos ao auge da oração. Choros, gritos, pulos, pessoas tremendo dos pés à cabeça. Em alguns casos alguém que é visto pelo grupo como cheio de Espírito Santo pode por as mãos na cabeça das pessoas que estão orando. A abordagem faz parte do próprio ritual e é feita com um movimento simples que consiste as em dizer algumas palavras como numa oração pela pessoa que esta sendo tocada. Na oração é que se cria o ambiente propício para o espírito santo se apresentar, embora na fase de cânticos ele também se manifeste.

A manifestação do Espírito Santo é uma experiência intensa. Alguns fiéis são tomados de tremores como em um acesso de riso. Outros rodam sobre o eixo do corpo, dando a impressão que acabarão caindo. Por vezes pendem de um lado para o outro, choramingando ou soltando uivos finos, prolongados. Em certas ocasiões fica claro a incapacidade de se orientar de acordo com a ação dos outros fiéis ou de coordenar os diferentes movimentos do corpo. Assim pode acontecer que algum fiel de repente solte as mãos dos outros, quebrando o círculo que fora formado para a oração, para girar por longos instantes, os braços desencontrados ora lançados para cima, ora jogados em direção ao chão. É normal que ao mesmo tempo, mais de uma pessoa se comporte assim e experimente a presença do Espírito Santo. Para a igreja, esta possibilidade de compartilhar é que “testifica” a veracidade da experiência. Não pode se inventar pois o outro saberá da verdade. O Espírito Santo está em mais de um lugar ao mesmo tempo.

Para os fiéis essa é uma experiência de alegria profunda. É como ser tomado por um sentimento que não se pode conter, mas que é, no fundo, um sentimento positivo: “Quando se está com o coração aberto para o senhor o espírito santo toca e faz com que a pessoa sinta uma alegria tão grande que ela não consegue se controlar. É como se tomasse um choque. A gente fica como se estivesse bêbado. A pessoa quando fica bêbada não fica tonta ? Só que quando se está bêbado do espírito santo a pessoa está consciente. Ela sabe que está rodando.”

Há especificamente dois dons do Espírito que se manifestam durante o culto, usualmente entre pastores e obreiros: a glossolalia e a revelação. O primeiro, dom de falar em línguas estranhas, tende a ser dar no contexto da própria oração, subitamente transformando as palavras do pastor em sinal direto do espírito santo. Quando isso acontece produz-se uma intensificação da própria oração. O segundo guarda características opostas a glossolalia: enquanto nesta o espírito se revela como pura espontaneidade e o sentido das palavras é remetido diretamente para o campo de poder que instauram, na revelação tem-se um discurso claro e estruturado que requer uma interpretação literal. Aquele que tem este dom se faz emissário da vontade de Deus de conceder uma graça a um dos fiéis. Esta graça recai sobre um aspecto da vida do fiel que é subitamente descortinado ou revelado ao pastor/obreiro(a) durante o culto. Pode ser um problema que está afligindo a pessoa – falta de dinheiro, emprego, doença – como também pode ser uma falta que foi cometida, e são muitas as possibilidades de falta ou desvio a moral da igreja – além de pecados como atentar contra a vida de outrem, roubar, duvidar das revelações e afastar-se da igreja, também desejar mal, invejar, prevaricar, masturbar-se, ir a festas mundanas, assistir televisão e especificamente para as mulheres usar roupa curta, cortar os cabelos, desobedecer aos pais ou maridos... Ao receber uma revelação o pastor usualmente começa dizendo “Tem alguém aqui que...” e descreve um certo comportamento ou estado, pedindo em seguida que a pessoa se apresente para receber a graça (que, no caso de ações faltosas, é o perdão divino). Usualmente alguém se ergue e vai té o púlpito, acompanhado pelos louvores dos demais, ajoelhando-se para ser abençoado. Como a glossolalia e a manifestação do Espírito nos fiéis a revelação atesta o poder de Deus; entretanto aponta para uma outra faceta desse poder. Nas duas primeiras é um poder que “solta”, ou desconstrói o corpo, rompendo com os controles cotidianos que operam sobre ele. A espontaneidade e relativa liberdade são marcas desse poder. Na revelação, por outro lado, trata-se do poder que vigia e disciplina, que reconstrói o corpo segundo a ordem divina. Em ambos os casos tem-se um poder uno que se singulariza e desdobra nos corpos para reconstituí-los enquanto sua habitação.

A força do espírito não é apenas vivenciada diretamente no culto mas continuamente testificada. Fiéis vão a frente para dar testemunho: contar aos irmãos como Deus tem agido em suas vidas. Os testemunhos tem uma forma bastante semelhante. Começam por falar de privações, dificuldade para conseguir dinheiro ou pagar dívidas, conflitos na família e problemas de saúde. Em seguida, ressaltam a impossibilidade de resolução imediata ou satisfatória do problema e o drama vivido por todos aqueles envolvidos. Daí descrevem o agravamento deste quadro ou proximidade sentida de um desfecho negativo, frente a que seus protagonistas decidem entregar o caso nas mãos de Deus. Assim – concluem - quando tudo parece estar perdido a resolução do problema vem quase sempre inesperada e inexplicavelmente, comprovando a ação milagrosa do Senhor.

A música tem um papel importante na condução do culto. Os cânticos- bastante simples e conhecidos de todos – preparam o terreno para a oração e fazem a passagem de um enquadre a outro no decorrer do ritual. É através do canto que muitos fiéis louvam a Deus quando vêm ao púlpito e por vezes um testemunho é precedido ou entrecortado por uma cântico entoado individualmente.


A história de Dona Lourdes
Dona Lourdes é uma senhora de aproximadamente 70 anos. Viúva, mãe de 10 filhos, mora no Nordeste de Amaralina com as duas filhas mais novas. Raramente está só em sua casa, pois recebe visitas constantes de filhos, nora e netos, além de vizinhas e irmãos da igreja. A filha caçula, Dolores ou Gaza como é conhecida no bairro, sofre de retardo mental e é fonte constante de ansiedade e preocupação para Lourdes. O nervoso de que sofre há muitos anos e que já configurou um quadro bastante grave no passado está intimamente relacionado com a doença da menina, hoje com 34 anos.

A história de nervoso de dona Lourdes começa quando ela tem a ultima filha. Deu a luz em casa como de costume, durante os festejos de São João. O parto fora normal e tanto ela como o bebê passavam bem até que, de repente, alguém joga uma bomba muito forte bem em frente a janela de seu quarto, assustando as duas: “Eu ganhei ela as 8:30 da manhã no dia vinte nove de junho, e defronte tinha uma festa, já estava programada essa festa, essas festas que vocês não alcançaram. A sua senhora sua mãe, sua vó conhece, era uma festa horrível, finalmente, não era horrível é porque finalmente, era muito forte, muita bomba, muita gritalhada, reza, muita reza num sabe? muita reza, festa de São João né? (...) Aí quando foi de noite não teve jeito porque realmente as bombas estalava em meu passeio. ... e jogou no meu janelão e ela se assustava, tanto ela se assustava como eu se assustava, entendeu? (...) Aí então não teve jeito, que dizer, que não teve jeito realmente. Então passando isso todo, uns sete dia, uns doze pra sete dias eu tive uma dor de cabeça horrível, horrível, mais horrível mesmo. Uma dor de cabeça tão forte, mais tão forte. Eu tinha sete ou oito dias que eu tinha ganhado ela. Me veio aquela dor de cabeça fortíssima, tão forte ... se eu fosse uma pessoa... nem sei... era pra eu sair gritando e tudo né? (...) Eu não suportava essa dor de cabeça não agüentava, eu não agüentava mesmo, não agüentava, dava pra eu sair gritando e gemendo”. Diante da situação o marido, que era oficial do corpo de bombeiros traz as pressas o médico do quartel, que examina Dona Lourdes e prescreve alguns remédios.

Este acontecimento divide a vida de Dona Lourdes em dois períodos bastante distintos. No primeiro era a mãe dedicada; amamentava seus filhos com prazer, zelava com afinco pelo seu bem estar e sempre lograva costurar-lhes roupas novas para as principais festas do ano. No segundo perde o ânimo de viver e mostra uma total indiferença para com a casa e a filha pequena: “Quando eu tive ela, eu não tive animo pra mais nada, nem pra cuidar dela, nem pra fazer comida, nem da casa... Eu, pra comer, eu pra comer, se eu disser uma coisa você minha filha, cê vai ver... Eu sempre cuidei de meus filhos, agora ela foi assim , precisava alguém colocar ela em meio seio. Olhe eu fiquei tão nervosa, tão nervosa mesmo. É me sentia angustiada, não tinha mais aquele prazer de arrumar minha casa como eu arrumava. As meninas já estavam crescidas, umas meninas de 14 e a mais velho já com seus 18 anos, trabalhava e essa daí molinha (aponta para Gaza) elas cuidava... eu nem gosto de me lembrar...”

O estado de nervoso de que se vê tomada coloca, assim, em cheque elementos centrais de sua própria identidade. Este é um momento tão difícil em sua vida que Dona Lourdes chega a pensar em suicídio, conforme depreendemos do seu relato: “eu tinha uma imaginação tão terrível na minha vida, uma imaginação tão terrível, que eu não falei com meu esposo, não falei com ninguém. Eu não falei, mas senti aqui no meu coração, se eu não ficar boa como eu era pra cuidar da minha casa, ser uma mamãe zelosa, eu não ia resistir, eu ia fazer uma coisa comigo. Quer dizer eu não falei com minha boca, mas eu falei dentro de mim que se eu continuasse com aquele nervoso, aquela tristeza...”

A doença da filha, também atribuída ao estouro da bomba de São João, embora só venha a se manifestar seis anos depois, torna bastante difícil para Lourdes superar o nervoso. A professora de Gaza comunica a Lourdes a incapacidade da menina acompanhar a turma – Gaza não lograva aprender nada e até mesmo para se alimentar ainda precisava de auxílio direto. A partir daí tem início uma carreira de idas a médico, transferência de Gaza para uma escola destinada a crianças excepcionais e até mesmo o início de um tratamento no candomblé do qual Lourdes odeia falar. Embora os “exames de cabeça” a que Gaza foi submetida não detectassem nada, os médicos deixaram claro a impossibilidade de que ela viesse a evoluir nos estudos, aconselhando Dona Lourdes a mantê-la afastada de qualquer tipo de empreendimento intelectual.

A preocupação com Gaza vem juntar-se, mais tarde a morte do marido, que deixa Dona Lourdes bastante abalada: “Eu sinto angústia e tristeza da falta dele.....e aí eu tô lá também tomando meu remedinho também. O meu é o Diazepan (...) Aí quando foi no dia treze ele (o médico) disse: ‘Dona Lourdes vamos dividir esses comprimidos?’ Aí eu disse ao doutor: ‘agora não, doutor, demora um cadinho mais...’ Não sei se é porque eu estou fraca mesmo. Porque meu esposo faleceu eu senti fraqueza não teve mais vontade de comer”.

O alívio para o nervoso Dona Lourdes começa a sentir quando ingressa no pentecostalismo. Nesta época sofria também de tonturas muito fortes e por esse motivo foi levada por uma vizinha a Igreja Quadrangular. Lá se converteu a lei de crente e vivenciou uma melhora do nervoso e das tonturas. Com o tempo, entretanto, diz ter começado a desconfiar da doutrina da igreja, pois as diaconisas ministravam a Santa Ceia usando batom, pintura, e outras provas de vaidade. Após sofrer duas paradas cardíacas e uma cirurgia de emergência, Dona Lourdes é levada a conhecer a igreja Pentecostal Deus é Amor. Segundo seus relatos lá ela foi revelada: o pastor dissera que estava com um problema grave no coração e que Deus escolhera aquele dia para dar-lhe um coração novo. A partir de então Lourdes deixa de usar os remédio para o coração; diz ter ficado completamente boa. Também melhora bastante do nervoso com a frequência a igreja Deus é Amor. Explica que ainda sente nervoso mas já não se trata do estado paralisante que vivenciou no passado: “Eu ainda sinto um pouquinho de nervoso, mas nada que prejudique mais vida, ainda fico assim nervosa mas, posso cuida da minha casa”.

Dona Lourdes considera que a igreja Deus é Amor tem uma doutrina mais pura e verdadeira que as outras, seus membros levam uma vida totalmente voltada para agradar o Senhor. Nisso reside a razão e beleza dos princípios morais rígidos que regulam a conduta do fiel, bem como o impulso para que ela mesma mude: “Porque realmente a gente vê na palavra que Jesus ama, ama o pecador, mas não o pecado. (...) Então enquanto nós vivermos aqui nesse mundo, o que nós praticarmos, temos que agradar o nosso Senhor Jesus Cristo. Então onde eu estou, eu estou bem, estou me sentindo muito bem. Olha, quer ver uma coisa? Na igreja Deus é Amor a gente não pode fazer nada do mundo, é tudo muito certinho. Quer ver um exemplo? Tem um rapaz que gosta de uma moça, a moça gosta do rapaz na Deus é Amor, num tem nada de sair da igreja pegado na mão, nem na igreja, nem em lugar nenhum. Se a pessoa se gosta vai falar com a moça, aí vai falar com o pastor, com a família e fica assim até casar... As mulheres tem que se vestir direitinha, viu, seu vestidinho aqui de manga e aqui em baixo do joelho com sua camisolinha por dentro, até pra dormir. Olhe, minha filha, até os homens dormem de calça, é! (...) A verdade é que na Deus é Amor a doutrina é finíssima, finíssima, puríssima, coisa especial. Não tem mistura. Então eu entendi isso e estou lá, graças a Deus e não faço coisa mundanas, porque nós somos vasos é temos que nos purificar ouviu, pois Jesus já esta voltada e quando ele vir tem que encontrar seus vasos limpos, puro, perfeito em tudo.

O ingresso de Dona Lourdes na Igreja Quadrangular já marcara uma nova orientação em sua vida. Como forte sinal dessa mudança ela junta todas as roupas e objetos sagrados do candomblé que foram usados por Gaza quando tratada com uma mãe de santo e os queima em plena rua, a vista de todos. Trata-se também de um primeiro passo para uma verdadeira purificação da sua casa. Mas essa demanda a conversão da família, graça que Lourdes ainda não obteve, feito que ainda não logrou produzir. Na sua fala ressalta a idéia de que a purificação do corpo e a purificação da casa – i.e. a transformação de ambos em receptáculos do Senhor – são parte de um só processo que estará sempre incompleto enquanto uma dessas dimensões não se realizar. Nas nossas conversas Dona Lourdes gosta de relatar exemplos de famílias na igreja Deus é Amor em que todos os membros já se converteram: “Ah! – costuma dizer- a família do irmão é a coisa mais linda deste mundo! Todo mundo é crente fiel”.

Na busca de purificação da casa (e da família), Dona Lourdes já não tem mais em casa as três televisões de que era dona e o rádio agora só fica sintonizado nos programas da Igreja Deus é Amor. Já conseguiu converter duas filhas e os outros membros da família, embora não frequentem a igreja, costumam escutar suas prédicas com certa reverência. Certa vez ao ouvir Dona Lourdes condenar seu comportamento aludindo aos “finais dos tempos” uma de suas netas reagiu com temor, dizendo: “Ai vó, pelo amor de Deus, a Senhora ora por mim, que eu não quero ficar aqui pra me queimar nesse inferno, eu que ir é com Jesus”; ao que ela respondeu: “Mas minha filha, você tem que se consertar também, olha aí esse shortinho, isso é roupa?”

A frequência a igreja só é impedida pela fraqueza que de é tomada de vez em quando: “As vezes eu ainda me sinto fraca, agora mesmo eu estou assim um pouco nervosa por causa dessa menina (Gaza), ela tava bem melhor, mas quando foi no mês junho ela piorou porque foi o mês que ela nasceu. Entende? Aí de lá pra cá eu tenho lutado um horror. Aí me dá um nervoso, eu fico nervosa e aí me sento fraca. Hoje mesmo tava com dor de cabeça. Aí quando tô melhor vou pra mim igreja, encontro com minhas irmãs é aquela alegria, fico lá com meu Jesus, esse testemunho do coração mesmo eu sempre tenho que contar, quando eu estou mais forte eu as vezes canto, gosto de cantar. E é assim oro por meu familiares todos, levo as fotos, peço as bênçãos , oro por todos”.

A fraqueza do corpo, que Dona Lourdes experimenta, é sentida como um certo impedimento para que venha realizar plenamente o seu ideal de converter-se em vaso para a manifestação do poder de Deus. Por isso ainda não foi batizada no Espírito Santo que é “uma coisa puríssima, finíssima”, não acessível a todos. Certa vez, conta que esteve muito próximo a receber o Espírito: “senti aquela coisa forte, eu tava no culto, e aquela oração tão poderoso, (eu tava mais fortissinha naquela época) então aquela oração tão poderoso e aquilo foi me enchendo e eu foi ficando assim, meu corpo tremendo todo, e aquela alegria... Aí ainda eu sinto alegre, mas eu não sei se é por que eu tô assim fraca, tô ficando velha, minha médica disse até que eu tô com anemia”.

Embora ainda sinta nervoso e não tenha alcançado o dom de ser preenchida pelo Espírito Santo, Dona Lourdes considera que sua vida tem agora um novo rumo: “Eu não faço parte deste mundo, não olho a mundanidade, não vejo televisão, praticamente vivo a santidade, procuro viver como meu Senhor manda. Hoje eu sou uma cristã. E graças a Deus tô feliz na Igreja Deus é Amor”.


O espiritismo

O espiritismo é uma religião baseada na doutrina do médium francês Alain Kardec. Estabelecido no Brasil em finais do século passado (Hess, 1989), congrega uma clientela preponderantemente de classe média. A doutrina espírita elabora a oposição entre bem e mal segundo um viés evolucionista - no quadro de uma linha contínua de evolução, o mal corresponde aos níveis inferiores de existência. O praticante espírita busca engajar-se ativa e conscientemente em um processo de desenvolvimento pessoal que implica acesso a poder sagrado (Warren, 1984; Droogers, 1989; Greenfield, 1992).

A abordagem espírita a doença e cura apoia-se nas idéias de evolução e energia. No mundo convivem espíritos com diferentes graus de desenvolvimento, destinados a um aperfeiçoamento contínuo. As relações entre esses espíritos, sejam encarnados ou desencarnados, envolvem circulação de energias, tanto positivas quanto negativas. A doença em primeiro lugar, aponta para o estado de desenvolvimento espiritual do doente; é sinal de fraqueza moral ainda a corrigir. Este estado refere-se não apenas as ações do indivíduo nesta vida mas pode remeter a uma situação advinda de encarnações passadas, conforme a doutrina do karma apropriada por Kardec. Em alguns casos a enfermidade resulta diretamente da interferência de espíritos menos desenvolvidos, que encontram pouso fácil no corpo dos que estão mais vulneráveis. São espíritos obsessores que provocam a doença porque de fato ignoram a maneira correta de agir; isto é, porque eles mesmo ainda não galgaram estágios evolutivos superiores (Greenfield, 1992; Droogers, 1989; Warren, 1984, Cavalcanti, 1983).

Aqui é preciso entendermos melhor alguns elementos da doutrina espírita. O mundo se revela ao espírita por meio de dois planos, o espiritual e o material. O primeiro é o mundo invisível dos espíritos, em processo de contínua evolução, ao longo do qual podem vir ter existências encarnadas, no âmbito do mundo material. O mundo material e o espiritual estão em contínua comunicação, embora seja no último que reside a o elemento chave ou propulsor de toda existência. A relação entre esses dois planos é constitutiva da própria pessoa. Para o espírita, cada pessoa é formada de um corpo material e de um espírito que sobrevive após a morte. Estes dois corpos estão ligados por meio do perispírito, uma substância semi-material, bioplásmica que está em volta de todo espírito e que é responsável pelas características individuais deste último (Cavalcanti, 1983).

O mundo material é um campo de provações, de dificuldades e sofrimentos passageiros necessários para a evolução dos espíritos. A chave desta evolução, conforme dizem os espíritas, está em uma vida devotada ao bem, ao amor ao próximo, ideal que é resumido pelo princípio da caridade. O espírita deve remodelar e regular sua vida de acordo com este ideal. Mais do que um simples acúmulo de boas ações, isso implica um controle reflexivo sobre si mesmo e sobre o corpo para que o espírito possa evoluir.

A formação espírita é, de fato, marcada por uma série de práticas de reflexividade e monitoração do corpo que visam conduzir a uma postura equilibrada frente a vida. O entendimento da vida a luz da doutrina deve, em primeiro lugar, possibilitar que cada um tenha compreensão e tolerância com suas próprias dificuldades. Só a partir daí é que se pode assumir responsabilidade sobre a evolução espiritual. Evoluir é de fato imprimir conscientemente, no exercício do livre arbítrio, uma nova direção à vida e às relações com outros segundo os princípios morais codificados na doutrina. A postura a que almeja o espírita, entretanto, é bem diferente, do compromisso militante do pentecostal. O controle de si se revela no equilíbrio, em uma atitude tranquila e serena frente a vida. Ao relatar como ocorreu a aproximação a religião, muitos espíritas freqüentemente se referem ao seu passado como marcado por uma modo de ser agressivo, nervoso, irritadiço, de revolta com o mundo. Tornar-se espírita é, ao contrário, aprender a se situar sempre de forma calma e tolerante frente aos outros e a si mesmo. O ideal de controle sobre o próprio corpo – sobre os impulsos, desejos e emoções – está também ligado ao valor que a cosmologia espírita atribui à racionalidade, a um modo de existência regulado pela capacidade de julgamento claro e pela ação resultante do exercício de tal julgamento.

Esta postura é também fundamental na própria mediunidade. No espiritismo as pessoas que têm capacidade de se comunicar com os espíritos são chamadas médiuns. Acredita-se que todos nós temos algum grau de mediunidade, apenas em alguns ela é mais desenvolvida, enquanto em outros quase não é percebida. Os médiuns são classificados em médiuns videntes, que são os que conseguem ver o que está ocorrendo no plano espiritual; médiuns de incorporação, por meio dos quais os espíritos se comunicam com o plano material e médiuns de percepção que percebem o que está ocorrendo no plano espiritual, mas cujo acesso a este plano, diferente do que acontece com o médium vidente, não se dá por meio da visão. Há ainda o médium de cura, que é aquele capaz de tratar pessoas doentes utilizando a presença de espíritos evoluídos.

A mediunidade é pensada em termos de uma comunicação de energia. “Na mediunidade o espírito não entra no corpo do médium, seja uma comunicação superior ou inferior. A aproximação com o espírito se dá mente a mente. E quando já existe uma aceitação, uma familiaridade com o espírito, ocorre quase uma simbiose entre o espírito e o médium”. A diferença entre os espíritos remonta a qualidades distintas de energia, com as quais o médium – que canaliza essa energia - precisa estar preparado para lidar. O espírito inferior tem uma qualidade de energia que se revela em uma maneira atormentada, desorganizada, enquanto o espírito superior emana tranquilidade, cumpre sua missão e se afasta sem se deter desnecessariamente no corpo do médium. Segundo um médium, o espírito superior “é como se fosse uma pluma que você vestisse e uma pluma que você está se desvestindo. O outro é mais agressivo, você se sente mal, faz determinados trejeitos, se o médium é mal educado pode bater na mesa”.

A mediunidade é assim fundamentalmente comunicação: o médium não é possuído mas canaliza energia, “é uma espécie de máquina consciente e inteligente que está a disposição do espírito, como uma máquina de escrever ou um computador”. Esse processo de comunicação requer duas realizações básicas por parte do médium. Em primeiro ele(a) deve estar aberto para captar ou canalizar a energia do espírito, estabelecer uma sintonia com a qualidade energética que este emana. Entretanto, não pode deixar-se tomar por essa energia, principalmente quando se trata de um espírito inferior. Deve estar sempre vigilante para não perder o controle sobre si pois caso não suceda estará pondo em cheque a atividade terapêutica que envolve a doutrinação dos espíritos obsessores. É no jogo entre abertura para o outro e controle de si, que reside o exercício correto da mediunidade. Nesse sentido é que para os espíritas apenas aqueles que já atingiram um certo grau de desenvolvimento espiritual (e portanto de disciplina e equilíbrio) podem exercer legitimamente a mediunidade.

Conforme já observado o exercício da mediunidade é parte integrante da atividade terapêutica desenvolvida em qualquer centro espírita. Esta se desenrola em um contexto organizado segundo moldes assistenciais: o centro é uma instituição que presta serviços terapêuticos a frequentadores e clientes ocasionais. Neste sentido é nítida a divisão entre aqueles que aí trabalham e aqueles que vem em busca de tratamento. Alguns centros tem uma estrutura fortemente burocrática: os espaços têm uma função clara e não ambígua e é mantido um controle metódico sobre o processo de tratamento. O cliente que dá entrada ao centro preenche uma ficha, descrevendo seus sintomas. Esta ficha é expandida com o registro dos vários terapeutas e tratamentos específicos pelo qual irá passar e é utilizada a cada novo ingresso no centro. Logo após a triagem inicial, o paciente é encaminhado para uma entrevistadora, com quem estabelecerá uma relação de caráter mais privado, nos moldes de uma consulta. É a entrevistadora que lhe indicará os tratamentos a que deverá ser submetido e é a ela que o paciente irá voltar após o término de cada um deles. Muitos destes tratamentos são construídos com base em um conjunto de imagens tiradas do domínio da prática biomédica, o que reforça a definição do centro como instituição assistencial.

O tratamento envolve tanto medidas sobre o doente quanto, nos casos de obsessão, uma ação direcionada ao espírito causador da aflição. A obsessão acontece com aqueles que ainda estão espiritualmente fracos ou pouco desenvolvidos. A pessoa que leva uma vida desregrada, amoral, voltada para seu próprio prazer e entregue a emoções negativas, como a raiva e a inveja, funciona como um imã para que espíritos inferiores se aproximem. O seu modo de vida e seus sentimentos são compatíveis com os sentimentos dos espíritos inferiores. Por sua vez, o espírito inferior, que traz consigo sentimentos e modos de conduta negativos, usa o corpo da pessoa obsediada para dar vazão a eles.

O tratamento consiste fundamentalmente em um empreendimento de cunho pedagógico: é preciso conduzir a pessoa em aflição – e, nos casos de obsessão, também os espíritos inferiores – a aprender e gradativamente adotar uma postura correta frente a vida, uma atitude serena, equilibrada, responsável. Trata-se de abrir caminho para um processo de evolução moral. O mais importante para conservar a saúde é manter uma conduta pautada na doutrina espírita, como forma de não se predispor à aproximação de espíritos considerados inferiores. Manter a vigilância contra comportamentos e pensamentos tidos como inferiores permite que não se entre em sintonia com espíritos ainda muito pouco evoluídos.

O doente precisa ser fortalecido espiritualmente. Deve ser instruído - através das palestras proferidas nas sessões doutrinárias, das conversas com o seu entrevistador, dos grupos de reflexão e estudo que são organizados no espaço do centro- a progredir moralmente, o que inclui, além das virtudes cristãs da caridade e amor ao próximo, o autocontrole, a disciplina e o estudo (aperfeiçoamento na doutrina). O progresso moral é acompanhado pelo fortalecimento de energias trazido pelo passe, ritual em que, através do movimento de mãos do passista/terapeuta, se opera uma transferência de energias positivas para o cliente .

A organização do passe expressa bem o ideal espírita. A começar tem-se geralmente um ambiente de penumbra em que se ouve uma música suave de fundo, acompanhada pela fala pausada e lenta de um dos médiuns, instruindo os presentes a manter silêncio e relaxar, fechar os olhos e descruzar braços e pernas. Este ambiente não é exclusivo ao passe, a luz azul e a música suave podem estar presentes em várias outras situações, como no início da sessão doutrinária e da sessão mediúnica. Na sala do passe para onde são encaminhados grupos pequenos, todos devem manter-se concentrados, com os olhos fechados, enquanto os passistas aproximam-se colocando e movimentando lentamente as mãos sobre a cabeça e ao redor do corpo de cada um.

Quanto a ação sobre os espíritos obsessores - desenrolada no contexto da sessão mediúnica ou de desobsessão - esta não é muito diferente do tratamento dispensado aos encarnados que sofrem com sua interferência. Essas entidades causadoras de aflição são, também elas, tratadas com gentileza, como se fossem crianças que precisam ser ensinadas a se comportar de maneira apropriada e motivadas a substituir a ação destrutiva, causadora da doença, por uma ação construtiva e benéfica. Ao curar o doente, os terapeutas espíritas visam também contribuir para o progresso moral das entidades responsáveis pela doença. O tratamento deve cura conduzir espíritos menos desenvolvidos a estágios superiores de existência.

A sessão mediúnica é usualmente restrita aos médiuns do centro, não sendo permitida a presença dos pacientes. A sessão se inicia quando um dos médiuns (o médium de incorporação) é manifestado do espírito que se aloja no corpo do doente; então passa a desenrolar-se um diálogo entre o médium doutrinador e o espírito, cujo conteúdo é claramente pedagógico: este deve ser persuadido a mudar de conduta de modo a permitir que o doente, em cujo corpo se aloja, possa recuperar seu bem estar. A conversa informal constitui-se no modo de comunicação privilegiado para a construção do cenário da cura. Enquanto o doutrinador e o espírito conversam, outros participantes (médiuns de apoio) oram em voz baixa. A mudança gradual na atitude do espírito durante as sessões (que podem ser várias), de recusa aberta ao diálogo a uma crescente sensibilização às palavras do doutrinador, redefine o contexto da doença.

É também usual em alguns centros espíritas a cirurgia espiritual, promovida por espíritos curadores através dos médiuns. As pessoas são a ele encaminhadas devido a vários motivos, desde impaciência e tristeza até câncer. Aos doentes que irão se submeter a esse tratamento é aconselhado, desde a véspera, que não comam carne, peixe ou galinha, não bebam e não fumem. O tratamento envolve três etapas: na primeira os pacientes são levados a orar e relaxar. Em seguida são conduzidos a uma sala onde recebem o passe e só então vão para a sala da cirurgia e deitam-se em macas. A “queixa” do doente é lida e o médium por meio do qual o espírito terapeuta atua trata o doente através de movimentos com as mãos sobre o seu corpo e pelo toque. Apenas o médium vidente é capaz de ver a atuação da espiritualidade sobre o paciente, descrevendo-a para um médium relator no momento em que está vendo. Este relato é posteriormente encaminhado para o entrevistador que repassa ao paciente. Enquanto os doentes são atendidos nas macas, outros médiuns reúnem-se em uma mediúnica para doutrinar seus espíritos obsessores.

Apesar de todos essas medidas para o tratamento da doença, os médiuns insistem em que a recuperação da saúde é, em última instância, responsabilidade do doente. Enquanto não houver um redirecionamento da vida, a pessoa estará sempre em condições de atrair energias negativas. O espírita precisa assumir inteiramente a responsabilidade pelo que lhe acontece. Daí a necessidade de uma contínua vigilância interior além de uma disposição tranquila e serena frente a vida. Nisso reside o equilíbrio tão valorizado.

A história de Lana
Lana tem 34 anos vive com o marido e duas filhas em uma casa que denota uma condição diferenciada ao interior do Nordeste de Amaralina. Bastante gorda, branca e com um modo de falar que aponta para um vocabulário diferenciado da média do bairro, Lana sente-se melhor colocada na escala social que os demais moradores.

O problema de Lana, segundo ela mesma conta, é o “nervoso”. Sua experiência de aflição é permeada por um sentimento de proximidade da morte, o que a leva à angústia e ao desespero. “eu só me sentia bem, fechada dentro do quarto... eu ficava o tempo todo dentro do quarto com a porta fechada... ouvindo rádio, quando passava uma notícia que morreu alguém, eu corria e desligava o rádio e ficava me tremendo, batendo o queixo. (...) Eu sentia.... ansiedade, sabe? eu sentia como se eu fosse morrer, tá? Eu sentia que naquele momento ali era meu fim. Então eu lutava, eu achava que tinha que lutar pra não morrer... (...) ... realmente é uma sensação horrível... é aquele desespero, é aquelas vozes no ouvido... é aquela coisa ardendo assim... como dizia assim: ‘você vai morrer agora!’. Aquela coisa me agoniava, eu num queria ouvir aquilo, tá entendendo? E pelo fato de minha facilidade de sentir, as vezes, um acontecimento com alguém... também isso causava esse pobrema... e, as vezes, eu ficava assim... passava por uma pessoa... essa pessoa olhava pra mim e aí eu dizia assim: essa daí num vai durar quase nada aí. Daí a pouco tempo diziam: ‘Cê sabe quem faleceu? Foi fulana de tal’. E aí, por causa daquilo, eu mais me apavorava, o meu medo crescia muito mais, tá entendendo? Porqu’eu tinha aquela coisa comigo e aquele medo... aquele espírito ficava me vendo, me ouvindo... um som me buzinando aquelas coisas. Acontecia sempre o que eu imaginava... aquilo me deixava muito mais nervosa, entendeu?”

Para Lana seu nervoso foi se gestando a partir das dificuldades da vida: filha de uma família pobre, mais tarde abandonada pelo primeiro companheiro com quatro filhos pequenos que teve de criar sozinha e sujeita a uma rotina pesada de trabalho para dar conta da casa e crianças. Pior que tudo isso foi a perda de um filho de sete meses. Segundo conta foi a morte da criança que selou definitivamente seu quadro de aflição. O itinerário terapêutico de Lana incluiu visitas continuadas a médicos – principalmente psiquiatras e neurologistas – além de passagens por um terreiro de candomblé e igrejas pentecostais. Os médicos restringiam-se a prescrever tranquilizantes e as agências religiosas, diz, só pioravam seu estado. Lana fez uso dos tranquilizantes durante muito tempo embora sempre lhe incomodassem os efeitos incapacitantes das drogas.

Há também outro elemento que Lana identifica na origem do seu estado. Ela acredita possuir um poder de curar e fazer previsões; o fato de não utilizar este potencial, na sua opinião, é uma das causas que do seu problema de nervoso. Conforme conta, sua vida tem sido permeada por toda uma série de acontecimentos que sinalizam a presença desse poder. Seu próprio nascimento é um deles: após os médicos terem cortado o cordão umbilical, Lana diz que se sentou e deu risada; então já exibia quatro dentes. Já adulta chegou a dar “sessão de mesa branca” em sua casa. Dois caboclos, um índio e um africano, aparecem sempre que ela precisa ajudar alguém. Conta que no momento em que se aproximam, sente muita ansiedade; quando vão embora não consegue se lembrar mais de nada: “Porque você sai de você, naquele momento, e entrega a responsabilidade aquele espírito. Você está assim, daqui a pouco, sua casa, seus filhos, ou alguém tá algo, alguma coisa... negativa. Aí você daqui a pouco você.. recebe, é pegada, é apanhada assim pela aquela... entidade. Lhe pega assim... e dá uma força diferente. Uma força energética, uma força... fora do comum. E quando você olha, você não é mais você. Você não fala mais igual, você é outra pessoa. Ali você sabe coisas (...) Porque lá naquele momento a entidade toma conta do corpo da gente, né? e a gente passa a ouvir mensagens. (...) Mas ele sempre deixa a sensação muito boa pra pessoa. Certo? Nunca me deixou e...sensações de... assim diferentes, nem nada que pudesse... modificar. Quando eles vão embora, eles leva consigo as coisas negativa e deixa as positiva, certo? Só que eu não consigo me lembrar o que foi que foi feito dessa coisa, tá entendendo?”

A experiência de Lana está, assim, permeada por um projeto de ser terapeuta. Associado ao seu potencial para curar está a experiência de “choques” que ela sente no próprio corpo e para qual encontra um explicação no espiritismo. Os choques, diz ela, ocorrem em consequência de não estar fazendo uso do seu poder para ajudar as pessoas; são, assim, mais um sinal desse seu poder. “Eu tenho minha mediunidade que eu preciso trabalhar, ajudar as outras pessoas, colocar essa energia para fora, porque senão vai me fazer mal. Esse choque que eu sentia, isso é energia presa, era um choque mesmo, parecia que eu era um robô e tinham me ligado na tomada. Você já tomou um choque? Pois é a mesma coisa, é um choque mesmo. (...) Eu venho de uma origem de 21 entidades. De 21 entidades. Tem gente que vem a origem de uma só. De um anjo da guarda, de um protetor e só. Certo? Eu venho de 21... entidades. Entidade essas que transmite vários tipo de energia. Vários tipo de coisa, por isso que eu passava pelo processo espiritual de...de.... de muito grande. Alcancei o terceiro grau de evolução...de por isso... por ter muita energia. Eu dava choque. Eu... cheguei no centro dando choque”.

Na perspectiva de Lana o espiritismo lhe acena, então, para a possibilidade de tornar-se uma terapeuta espírita. Diz ter encontrado na terapia espírita a solução para seus problemas. Frequenta um centro grande, situado na fronteira entre o Nordeste de Amaralina e a Pituba, bairro de classe média, contíguo ao Nordeste. Mostra-se maravilhada não só com o grande número de pessoas que procuram o espiritismo mas também com a boa condição econômica dos frequentadores desse centro. A cura no espiritismo, para Lana, parece estar ligada também a possibilidade de uma melhora geral em sua vida, inclusive financeira.

No centro espírita, Lana participa do passe, comparece as palestras doutrinárias, frequenta sessões com o Irmão Palminha – um espírito médico que incorpora um dos médiuns do centro - e tem encontros regulares com uma entrevistadora, com quem conversa sobre seu problema. Em um desses encontros, logo no início do seu tratamento, a entrevistadora sugere a Lana que ela está como um guarda-roupa desarrumado. Para pôr as coisas em ordem Lana deveria conduzir-se de acordo com as prescrições da doutrina espírita. Isto exige uma disciplina que Lana diz lhe faltar em alguns momentos. Antes de ir ao centro, por exemplo, ela considera necessário não ingerir bebida alcoólica, ter dormido bem, não comer comida “pesada”, estar calma etc., atitudes que muitas vezes tem dificuldade em assumir. Isso tem levado Lana a não conclusão da terapia, o que considera como uma dificuldade sua que não tem nada a ver com qualquer objeção ao que é proposto pelo espiritismo.

O passe, segundo Lana, é algo capaz de curar qualquer pessoa com problemas: “Quando você tá sentindo alguma coisa, que você toma o passe, com fé, você fechou os olhos, você toma um passe com fé, é você... muda, tá entendendo? Cê muda mesmo. Cê consegue tirar os pés do chão. Você consegue naquele momento sair... de você. E ir aonde você quiser, certo? Porque o passe não precisa você pedir. Os espíritos sabe tudo que você sente, tudo que você precisa. Então, quando o médium tá dando um passe ele já vai no lugar certo. Ele já passa a... a energia no lugar certo, aonde você tá sentindo as coisas. Certo? (...) Mas quando você sai da sala de passe você sai... renovada. E se todo dia você tomar, cada dia você tá renovando suas energias, renovando, renovando, e aí você vai conseguir fazer tudo o que você tem vontade. Que você tem algum problema, você vai sair do pobrema. Porque o passe é uma troca de energia e é uma maravilha”.

Lana percebe entre os membros do centro uma postura tranquila que associa diretamente a educação e que compõe mais um traço de distinção do universo de classe média que tanto lhe fascina: “Cê vê que a vida das pessoas... do centro são pessoas educadas... são as pessoas que num ... num é nervosa, não são pessoas que num se deixam levar por qualquer coisa, não entendeu? Por nada [diz, em tom mais elevado], por nada...”. Esta postura tranquila está intimamente relacionada a outro elemento do ethos de classe média que Lana capta bem ao sintetizar a abordagem espírita a doença: “Se você chegar lá chorando, então, ela que que você num chore, e elas faz de tudo e elas consegue que você pare de chorar porque ela diz, você é dono de você mesmo, e quando a gente quer, a gente consegue”.

A centralidade da idéia de controle de si aparece na série de conselhos e ensinamentos que Lana recebe dos terapeutas espíritas. Um destes aponta para a importância de que ela se torne independente, que assuma as rédeas da sua vida: “Meu problema era na cabeça, era...eu não tinha cabeça pá pensar em coisas boas. Eu pensava o tempo todo em coisas negativas. E quando a gente para e pensa que... o negativo já atingiu uma boa parte da nossa mente, do nosso corpo e da nossa casa e do nossos filhos, aí a gente começa a lutar pá ser independente”. Outro campo sobre o qual buscam intervir os terapeutas do centro remete às experiências de incorporação vivenciadas por Lana. Enfatizando a importância de se ter controle sobre o próprio corpo, passam uma série de instruções para que Lana evite a perda de consciência e a entrega de si ao poder dos guias.

Esta proposta não é bem aceita por Lana que sempre se orgulhou de seu poder espiritual e, segundo insiste, sempre foi beneficiada pelos seus guias. Por conta disso, o seu entusiasmo com o espiritismo sofre certo abalo após alguns meses. O tratamento com Irmão Paulo é apontado como um dos elementos marcantes nesse processo de desencantamento com o centro. Lana participara de um atendimento com o terapeuta e fora recomendada por ele a deitar-se sobre um lençol branco assim que chegasse em casa, ficando por algum tempo nessa posição. Como já havia lhe acontecido anteriormente após o atendimento de cura espiritual com Irmão Paulo voltou para casa invadida por um certo mal estar, sentindo-se pesada, com dor de cabeça. No dia seguinte foi ao centro conversar com sua entrevistadora sobre o ocorrido; ela não estava e Lana sentou-se, chorando, em um dos bancos no pátio, foi socorrida por uma mulher que trabalhava no centro. Esta lhe explicou o cerne do tratamento de Irmão Paulo: segundo ela, seu objetivo era bloquear os guias de Lana. A mulher lhe recomendou, então, que voltasse para casa, acendesse uma vela para seus guias e ajoelhada, orasse, pedindo-lhes perdão. Se assim fizesse poderia reverter o processo. Além disso lhe aconselhou a procurar outro centro, mais próximo a linha de Umbanda, pois no Paulo Estêvão não poderia contar com aprovação ao seu tipo de mediunidade.

Lana passa algum tempo sem frequentar o Paulo Estêvão mas com o agravamento do seu nervoso resolve voltar ao tratamento do irmão Paulo. Desta vez é encaminhada também para um grupo de crescimento espiritual. Após o tratamento diz sentir-se bastante serena o que se expressa inclusive no seu tom de voz, lento e pausado. A participação no grupo de crescimento é vista por ela com entusiasmo inclusive porque parece sinalizar um caminho alternativo no seu projeto de ser terapeuta.


Alguns comentários a guisa de conclusão

Ao discutirmos as abordagens a doença e cura cultivadas no candomblé, pentecostalismo e espiritismo descrevemos vários contextos em que se define, desdobra e redefine a experiência de pessoas com problemas relativos a saúde mental. Partimos de duas questões centrais, que convém agora retomar: a reconstrução da experiência da doença ao interior do domínio religioso e a absorção da experiência religiosa de cura no mundo da vida cotidiana.

Conforme apontamos acima a ação terapêutica (explícita ou não) desenvolvida ao interior de qualquer grupo religioso situa a doença e a cura em quadro mais amplo de relações do indivíduo com o sagrado. Utilizamos o conceito de enquadre proposto por Goffman para analisar os novos contextos de significação propostos na religião, particularmente através dos seus rituais. Os enquadres construídos nos rituais mediante a combinação de meios como música, dança, discurso, transformam a aflição ao transportá-la para contextos radicalmente novos, transformam o doente ao conduzi-lo a ocupar um outro lugar frente a essa experiência, ao situá-lo em uma nova perspectiva. Problematizando essa idéia de transformação, argumentamos que ela pressupõe um envolvimento imaginativo do doente no universo dos vários enquadres construídos no ritual, que propusemos analisar como um modo de engajamento corporal e não uma forma de pensamento, intelecção ou consciência. A partir dessas idéias podemos tecer algumas considerações sobre as experiências de doença e cura construídas ao interior dos três grupos religiosos estudados.

Um primeiro elemento a se considerar diz respeito a caracterização dos enquadres mais amplos oferecidos pela religião. Estes enquadres definem os espaços e formas próprias de sociabilidade em que se insere o doente ao ingressar no grupo e a partir dos quais se desenrola sua experiência de cura.

No candomblé observamos a força e vitalidade das redes de relações constituídas em volta do eixo do terreiro. Tais relações muitas vezes se sobrepõem e reforçam vínculos já existentes de parentesco e vizinhança que remetem a enquadres definidos a partir do plano da casa, da família. Este ponto já foi observado por vários estudiosos das religiões afro-brasileiras. Como a família, o terreiro acolhe, protege, produz alimento e dá de comer a todos, segundo uma hierarquia de aliança e subordinação, que se desdobra e segmenta em vários níveis. Na igreja Deus É Amor observamos também a importância das relações criadas em torno da igreja: os membros tornam-se irmãos e o batismo de certo modo lhes introduz em uma nova família. Entretanto, diferentemente do candomblé, o enquadre aí proposto é em vários aspectos regidos por uma lógica distinta e alternativa ao modelo da família. A casa é assim substituída pela igreja que constitui também um certo espaço burocrático e o cotidiano doméstico da casa transforma-se na imagem do trabalho sério e dedicado das obreiras. Neste sentido a igreja ....embora a considere como pilar da vida social; oferece um espaço em que as relações de pertencimento ao grupo – as várias atividades que congregam os fiéis: correntes de oração, evangelização na rua, reunião do grupo de jovens, do grupo de senhoras, etc. – devem assumir papel central na organização do cotidiano.

De todas as três vertentes religiosas o espiritismo é aquela que mais se afasta dos enquadres construídos segundo as regras da família. Aí o modelo da casa parece ser substituído pelo modelo da instituição burocrática. O centro é local de serviço, do exercício da caridade para seus dirigentes e médiuns. É local em que se desenvolvem e ascendem espiritualmente. Para os que lá acorrem em busca de cura ou alívio para o sofrimento pode facilmente se constituir em mais uma alternativa de atendimento, em que certos serviços terapêuticos lhe são tornados disponíveis. Essa assimetria é tanto mais forte para o caso dos clientes de classe popular que não dominam ou tem um acesso restrito ao capital simbólico que circula no centro: a linguagem erudita e psicologizada que define vários espaços como as palestras, grupos de estudo, workshops e grupos de crescimento espiritual. Por outro lado, a burocracia das fichas, prontuários, agendas com horários e tipos de terapia a serem seguidos por cada um, bem como a simbologia médica que caracteriza vários dos atendimentos – salas com macas, cheiro de éter, etc. – distancia o centro do mundo da casa, das relações na família, e o aproxima dos espaços mais formais do mundo público.

A inserção do doente/fiel em potencial em um desses enquadres - e nos modos de sociabilidade que delimitam - irá se desdobrar em uma série de interações ao longo do tempo, muitas das quais de caráter ritual. É no contexto do ritual - e dos enquadres menores propostos ao interior deste - que o doente irá experimentar e afirmar novos modos de colocar-se frente a aflição, aos outros e a si mesmo. Aqui encontramos diferenças marcantes entre as três religiões e os tipos de experiência que proporcionam aos seus membros.

No candomblé o restabelecimento da saúde é ritualmente construído enquanto criação, reprodução e fortalecimento de laços com as entidades sagradas. Firmada com a iniciação, a relação do indivíduo com o seu santo e também com o erê, o exu e o caboclo que manifesta reconstrói a identidade como um diálogo de muitas vozes, ao recolocar o corpo como diferentes vontades e modos de ser-no-mundo. Os enquadres rituais criam possibilidades para e permitem o desenvolvimento de uma experiência de “outros” irrompendo no corpo. Esta experiência do outro - o qual de início é apenas a imagem que se vê, o orixá que se admira nas festas - é construída passo a passo, aprendida fundamentalmente com os sentidos através da iniciação. Enquanto a possessão implica um modo de engajamento no universo das imagens sagradas em que as distinções sujeito-objeto, observador-observado, signo-significado se esvanecem temporariamente e perdem sua utilidade de guia para ação.

A importância dos sentidos na construção dessa experiência bem como o senso de alteridade que ela institui se desprende das próprias descrições dos membros. As metáforas utilizadas para a possessão no candomblé advêm do domínio das relações sexuais, especificamente de relações em que um se faz passivo - é montado - e o outro ativo - é o que monta. Isso tanto ressalta a dimensão encarnada do ser possuído quanto aponta para o fato de que o que está em jogo é o comando do corpo por outro. Não é a toa que, para os adeptos do candomblé, a possessão implica - em sua forma mais legítima - perda total de consciência. Celebrando a vinda dos orixás e caboclos via a possessão o ritual permite a experiência radical de uma identidade múltipla. Nele a narrativa do eu é uma narrativa encarnada e pública: tecida pelo corpo e compartilhada com outros, que apreciam e se envolvem. Essa identidade múltipla, entretanto, não é vivida exclusivamente no contexto ritual, embora encontre aí sua possibilidade mais radical de expressão: extravasa sob diferentes formas para o mundo cotidiano.

Ao explicar sua resistência em deixar-se possuir por seu santo, Ritinha utiliza uma imagem que é bastante esclarecedora da repercussão que, em um primeiro momento, a experiência religiosa tem no cotidiano. Enquanto possuída Ritinha sente-se preenchida pelo santo como na relação com um amante; quando este se vai resta-lhe apenas um vazio. Este é provavelmente o sentido a que alude Schutz quando aborda a transformação de um problema na passagem de uma província de sentido a outra, a partir da idéia de um oco no fluxo de nossa experiência. A explicitação desse vazio, argumentamos, se dá, ao menos em parte através da produção de narrativas. Nas histórias que os adeptos do candomblé elaboram e continuamente refazem é ressaltada a ação de outros - orixás, exus, erês, caboclos - que transgridem, se divertem, castigam, fazem sofrer e fazem curar no corpo do sujeito. A vida narrada e, portanto, a identidade, transforma-se em diálogo em curso de personagens que se sucedem, que lançam novos pontos de vista e descobrem novas aberturas ou alternativas no contexto vivido.

É preciso nos determos na análise das implicações dessas narrativas quando efetivamente incorporadas ao cotidiano do doente. Conforme já observamos, o restabelecimento da saúde nos quadros do candomblé não é um empreendimento moral – não implica correção ou aperfeiçoamento moral e não exige adoção de um novo estilo de vida - embora possa representar mudanças bastante significativas na vida dos fiéis. Em que residem precisamente essas mudanças? Uma primeira aproximação sociológica a essa questão aponta para a legitimidade que o candomblé pode conferir a comportamentos pouco usuais ou divergentes dos padrões socialmente aceitos. Isso sem dúvida sugere, a título de hipótese, uma maior abertura da religião, aos comportamentos desviantes exibidos por indivíduos com problemas relativos a saúde mental. Entretanto é preciso ir um pouco mais além da busca de correlações exteriores estabelecidas na explicação rumo a uma compreensão da experiência mesma das pessoas que são tratadas e vêm a compor o grupo dos membros da religião. O ingresso no candomblé não apenas reveste com uma capa de legitimidade comportamentos ou modos de ser já exibidos anteriormente. Narrar o eu como múltiplo sem dúvida retira do eu singular a responsabilidade e culpa por eventos e experiências discrepantes dos padrões vigentes – como a doença mental – distribuindo-a e suavizando seu peso. Desloca o foco da atenção do indivíduo para os contextos dialógicos ou relacionais que seu corpo delimita e expressa: o chamado ou castigo do santo, por exemplo. Entretanto, não apenas conduz a uma melhor aceitação – por parte do sujeito e dos outros com quem convive – da ambiguidade ou contradição que cada um encerra no seu comportamento mas conduz também a exploração ativa e legitimada de novos e alternativos modos de ser-no-mundo. O caso de Ritinha é um exemplo marcante desse fato: em Boiadeiro Ritinha descobre e se engaja em um mundo público de trabalho, farra, distância frente a esfera doméstica do cuidado com as crianças e a casa, ao qual enquanto Ritinha tem um acesso limitado.

No pentecostalismo da Igreja Deus é Amor a doença e a cura são fundamentalmente parte de um processo amplo de libertação e fortalecimento no poder de Deus. Diferente do candomblé, curar é um empreendimento moral. Há assim um movimento oposto aquele operado no candomblé no que toca a construção do indivíduo curado, adepto da religião. Enquanto o candomblé constrói o indivíduo como múltiplo - ensinando-o a conhecer e conviver com o outro que toma conta de si - o pentecostalismo o constrói como um no Senhor. Não multiplica o eu mas o fortalece enquanto parte de uma trama sagrada e coletiva que é a igreja. Desloca toda experiência de alteridade para fora da igreja e do eu.

Através de uma sucessão de enquadres o ritual cria uma onda de poder sagrado que envolve os fiéis, preenchendo todo o espaço da igreja. Os cânticos e a oração em grande medida logram este feito, constroem a presença divina como uma nova qualidade ou efeito sonoro que se destaca da sobreposição de muitas vozes, sem partir de nenhuma delas isoladamente. Assim trata-se de um poder que é em primeiro lugar coletivo, mas que ao mesmo tempo se singulariza em cada um, que faz de cada corpo sua habitação. Os fiéis não oram em uníssono; cada qual entrega-se com fervor a sua oração individual enquanto a vê gradativamente sumir em meio a um turbilhão de muitas vozes e orações. É só aí, quando é quase impossível discernir a parte de cada um na produção do evento, que novamente a perspectiva individual pode se destacar. Este é o momento em que o Espírito Santo se manifesta.

A imagem dominante é a de fazer do corpo uma habitação. Esta imagem - e o tipo de experiência que ela resume - tem características bastante peculiares. O corpo habitado pelo Espírito treme, se contorce, salta e gira - é tomado por movimentos espontâneos, desordenados. É sinal de um poder que rompe com as regras deste mundo, que pode desafiá-las sem medo. Expressa, neste sentido, o ideal pentecostal de ruptura com o mundano. Entretanto também é um corpo que se purifica e disciplina para transformar-se em uma casa que o Espírito possa habitar, expressando a busca pentecostal de reconstrução ativa e ordenada do mundo a partir do sagrado. Ser habitado aponta em primeiro lugar a idéia de que se é um vaso, morada ou receptáculo do divino. Não evoca nem a sensualidade nem a alteridade radical implicadas na experiência de ser montado pelo orixá. Para os fiéis a experiência do Espírito Santo não envolve perda total de consciência - não se trata de ser tomado pelo outro mas de ser um nele. Remete a possibilidade de ser preenchido pelo poder divino mas também a necessidade de tornar-se sólido ou forte o suficiente para abrigar esse poder. Neste sentido depende ao menos em parte, de uma tomada de posição por parte do sujeito, de uma decisão de libertar-se e de deixar que Deus opere milagres em sua vida.

Isso fica bastante claro no modelo narrativo que o ritual propõe para a reconstrução da experiência. Este tem como uma de suas características marcantes, o contraste entre duas formas de existência: um passado de ignorância, pecado e sofrimento e um presente de retidão e força no Senhor. Duas estratégias narrativas básicas emergem no ritual para construir e manter vivo esse modelo genérico: o testemunho e a revelação. No primeiro tem-se o desvelamento da vida em que o fiel é chamado a descrever em o contexto de miséria, doença e/ou depravação em que vivia até converter-se e, após dado esse passo, as continuadas graças que tem recebido do senhor. Os desviantes da sociedade – criminosos, devassos, alcoólatras, prostitutas, homossexuais e doentes mentais - encontram assim abertas as portas da igreja e ao ponderar sobre a possibilidade de ingresso não precisam ocultar suas identidades. Sua história pessoal é tida como mais um fio de uma trama divina; também ela irá comprovar o poder de Deus em operar maravilhas na vida. É para esta direção que convergem as biografias daqueles que ingressaram na igreja. Se diferem quanto ao conteúdo específico da vida anterior a conversão, quanto aos vícios, doenças, ofensas e fracassos vividos, tendem a se assemelhar quanto ao rumo que vêm a tomar com a entrada na igreja. Aí a diferença transforma-se em unidade, os comportamentos assumem uma forma padronizada, são emblemáticos do ser crente. A revelação cumpre um papel importante na manutenção deste padrão: busca conduzir mais diretamente as histórias individuais, colocando de volta nos trilhos aquelas que porventura se descarrilharam.

Incorporado no cotidiano, nas conversas e encontros que comprazem a rotina diária, este modelo narrativo oferece um meio para a organização da experiência, não apenas enquanto eventos transcorridos mas possivelmente também enquanto eventos que se está vivendo e procurando administrar. Mais uma vez é preciso ir além da constatação de que a religião abre as portas e acolhe os desviantes para compreender a que modalidades de experiência lhes dá acesso. As narrativas exemplares tecidas nos cultos orientam tanto a identificação de elementos importantes da situação que se viveu como uma exploração ativa da situação que se vive. A experiência de Dona Lourdes é bastante ilustrativa neste sentido.

Dona Lourdes reorganiza sua vida de acordo com a narrativa pentecostal: seu modo de ser espelha o ideal da igreja Deus é Amor; visa agradar a Deus. As marcas de distinção que exibe no corpo enquanto crente e que vê refletidas nos outros membros, separam-na radicalmente de tudo que é mundano, ao tempo em que lhe apontam para o poder que circula na igreja. A possibilidade de compartilhar desse poder e de ser habitada por ele orienta seu comportamento, sua relação com a doença e com os outros. Não se trata, entretanto, de um movimento que individualiza. A experiência que Dona Lourdes tem do Espírito Santo mostra o quão fortemente imbricados estão o corpo individual e o corpo social. Enquanto sua casa (que funciona como metáfora para a família) não for purificada e refeita a partir dos princípios sagrados, ela mesma não pode tornar-se uma perfeita morada para o senhor. Daí o seu compromisso militante: a queima dos objetos do candomblé em plena rua, a luta incansável por converter filhos e netos. O espaço que a “habitação do espírito” circunscreve não é primeiro e fundamentalmente o espaço do sujeito individual mas o espaço moral da igreja e, conforme mostra Dona Lourdes, da família. Por outro lado esse espaço moral não pode ser abstraído do espaço físico do corpo. A solidez da habitação que cada fiel pentecostal almeja ser depende não só de uma inabalável força moral mas também de um corpo saudável. Dona Lourdes já se julga muito fraca e consumida pela idade para dar pouso ao Espírito – seu corpo não pode mais ser uma morada segura para algo tão fino ou, o que dá no mesmo, não tem a força necessária para resistir a uma experiência tão intensa. Esta percepção não conduz ao senso de uma identidade diminuída mas, ao que parece, ao reconhecimento de limites no projeto radical de santificação proposto pela igreja.

No espiritismo a doença e a cura são situados em um quadro de desenvolvimento espiritual. A doença sinaliza potencialmente uma espiritualidade ainda pouco desenvolvida e portanto uma situação de fraqueza moral. O tratamento tem, conforme argumentamos, uma dimensão pedagógica fundamental. Assim ao lado de medidas terapêuticas diretas como a cirurgia espiritual ou a desobsessão, ensina um padrão de comportamento pautado no sentimento e prática da caridade.

Vários dos enquadres interacionais em um centro espírita se desenrolam segundo o modelo do ensinamento, desde a sessão doutrinária e entrevista até a sessão de desobsessão. Seus participantes diferenciam-se, assim, de acordo com o grau de conhecimento e progresso moral: há os que educam e os que aprendem, embora uma mudança de enquadre possa implicar para sujeitos singulares um movimento de um papel a outro. Na construção desses enquadres domina o recurso ao discurso falado e particularmente a práticas discursivas de questionamento, aconselhamento, argumentação e convencimento, – o que reforça a idéia de uma instância pedagógica.

Se no espiritismo a relação terapeuta-paciente é, por assim dizer, embebida em um enquadre maior definido pela relação educador-educando, é preciso lembrar que a pedagogia espírita não se resume a transmissão de regras ou reforço a princípios morais. Partindo da idéia de que a fraqueza remete a falta de esclarecimento e empenho para reger a própria vida, trata-se de uma pedagogia que visa colocar o indivíduo no caminho do aperfeiçoamento de si, transformá-lo, a partir do exercício racional da disciplina e autocontrole, em sujeito consciente capaz de assumir com responsabilidade o curso (evolutivo) de sua existência.

Esta busca de afirmação de um domínio individual autônomo aparece não só no conteúdo do ensinamento espírita como também na forma como o corpo é envolvido nos rituais. Há uma preponderância do verbal e a postura corporal incentivada é de relaxamento e abertura para as palavras. Mesmo no passe e na cirurgia espiritual, a intervenção é ao redor do corpo mas não o toca. Há um certo respeito ao corpo de cada indivíduo no sentido de não haver uma investida direta. Se compararmos com o pentecostalismo e o candomblé, em que o contato com o corpo do outro tem papel importante em vários momentos do ritual, talvez possamos afirmar que no espiritismo o espaço que os corpos ocupam têm maior circunferência, como se uma redoma invisível separasse cada corpo dos demais.

Estes são também temas que regem a experiência da mediunidade. A imagem que define o transe mediúnico para os espíritas é a da comunicação. Na medida em que comunicar-se com um espírito desencarnado envolve um movimento estratégico entre a abertura para o outro – sintonização com a qualidade de energia que ele emana – e a segurança de si enquanto polo do diálogo, exige do médium um controle e disciplina bastante desenvolvidos. Neste sentido o transe mediúnico contrasta tanto com a perda e multiplicação do eu no candomblé quanto com a entrega de si no Espírito operada nos cultos pentecostais. Regido por uma postura controlada é uma experiência legitimada e incentivada apenas entre os que já galgaram estágios superiores de desenvolvimento espiritual. Conforme já observamos estes são aqueles que melhor expressam o ideal do indivíduo autônomo: equilibrados, serenos, racionais.

No universo do espiritismo Lana é inserida em um programa de desenvolvimento espiritual. Para ela sobressai primeiro o tom geral da proposta espírita: no centro tudo parece exprimir um ideal de serenidade, desde a organização dos espaços terapêuticos – a música suave de fundo, a atmosfera de penumbra, as paisagens de natureza retratadas nos posters colados nas paredes– até a postura geral dos médiuns – fala pausada, tom de voz mais baixo, movimentos tranquilos, argumentos ponderados. A postura do espírita é de uma distância monitorada: envolve uma atitude de calma refletida frente as situações problema – conforme Lana percebe – que é bastante distinto do engajamento militante dos crentes e do envolvimento no mundo dos adeptos do candomblé. Esta atmosfera delineia o contexto em que é proposta e trabalhada uma narrativa de Lana. A imagem do guarda-roupa desarrumado é elemento central dessa narrativa, na medida em que a um só tempo descreve um estado geral de coisas no presente e antecipa um desdobramento deste estado no futuro. Condensa, enquanto imagem, várias camadas de sentido. Em primeiro lugar, é bastante expressiva do projeto espírita de evolução mediante uma ação ordenadora da vida por parte do sujeito. Além disso aponta para a necessidade de uma prática disciplinada e racional para manter a ordem instaurada – o guarda-roupa arrumado. Por fim estabelece a perspectiva ou identidade de um sujeito/personagem. Esta é uma identidade processual, em curso de desenvolvimento: diferente da experiência identitária no candomblé que é plural e, portanto, sempre potencialmente marcada por um senso de ambiguidade e imprevisibilidade; mas também distinta da identidade pentecostal, fundada na força inequívoca e não-ambígua da igreja, habitação por excelência do espírito.

Trata-se de um projeto de cura (e identidade) que é, em grande medida, alheio ao universo cultural das classes trabalhadoras. Reflete um ethos individualista, um ideal de progresso e diferenciação, conforme já observado por alguns estudiosos do espiritismo. Lana é ao mesmo tempo atraída por este ideal – integra seu projeto de ascensão social – e fortemente limitada por ele em sua demanda de acesso legítimo ao poder sagrado. O relato de sua experiência no espiritismo, marcada por fortes oscilações entre o engajamento sério e o quase abandono, levanta um elemento central no processo de incorporação ao cotidiano de experiências tecidas na esfera da religião: ressalta o papel dos hábitos, interesses e planos da vida cotidiana, delimitando o campo de sentido a partir do qual pode se dar essa incorporação.

***

Comparando as abordagens a doença e cura tecidas no candomblé, pentecostalismo e espiritismo se destaca logo de início as diferenças marcantes entre os enquadres e imagens que cada um propõe para reconstruir a vivência da aflição. Há sem dúvida modalidades de experiência distintas associadas as imagens religiosas de ser montado pelo orixá, ser habitado pelo espírito santo e entrar em comunicação com espíritos desencarnados. Nosso argumento foi de que essas modalidades de experiência se constroem a partir de um engajamento do corpo – como campo unificado dos sentidos – no universo das imagens que compõem os enquadres rituais. Ao longo do trabalho buscamos abordar a questão de como tais experiências religiosas abrem espaços no cotidiano: sugerimos que as narrativas que as religiões põem em movimento são recursos importantes nesse processo. Entretanto, conforme argumentamos, o papel dessas narrativas na transformação da experiência de aflição não é o de dar vazão ou recobrir com uma capa de legitimidade identidades, inclinações ou projetos previamente existentes mas impossibilitados de ser assumidos em condições ordinárias: é, antes, o de abrir caminhos para uma exploração ativa de novos modos de ser-no-mundo.

A reflexão a partir de experiências concretas de tratamento permitiu-nos justamente compreender melhor as distintas possibilidades existenciais abertas pela inserção religiosa. Por outro lado apontou, também, para a distância existente entre o modelo genérico oferecido pela religião e a experiência vivida dos doentes, sempre mais complexa e multifacetada. Um dos elementos que marca essa distância diz respeito aos complexos percursos de participação religiosa vividos por boa parte dos indivíduos de classe popular que estudamos. Esses percursos e o sincretismo que instauram – o diálogo e tensão de diferentes perspectivas religiosas no curso de uma vida – não são desprovidos de consequências para o desenrolar de cada tratamento específico. Já está na hora de endereçarmos essa questão com mais seriedade.

Para finalizar cabe apenas observar que este trabalho pretendeu apenas levantar algumas questões no estudo comparativo das terapias religiosas. Tratam-se, conforme procuramos mostrar, de questões bastante complexas que exigem estudos posteriores e convidam a novas discussões.


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