quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Pesquisa que pretende mapear o imaginário do negro na literatura infanto-juvenil brasileira

Andréa Lisboa de Souza - entrevista


do www.portalafro.com.br
por Jader Nicolau Jr. (fotos e reportagem) e
Milton C. Nicolau (edição)

A educadora Andréa Lisboa de Souza cursa o mestrado em Educação na Universidade de São Paulo (USP) e é orientadora educacional do Instituto do Negro Padre Batista, em São Paulo. Atualmente, desenvolve uma pesquisa que pretende mapear o imaginário do negro na literatura infanto-juvenil brasileira. Nesta entrevista, concedida durante o seminário "Perspectivas Educacionais para o Negro Brasileiro no Terceiro Milênio", na Estação Ciência, em São Paulo, a professora falou sobre seu trabalho e da ausência de personagens e heróis negros na literatura.

Portal Afro - Como surgiu seu interesse em estudar a presença do negro na literatura infanto-juvenil?

Andréa de Souza - Meu interesse em trabalhar essa questão surgiu a partir de uma necessidade, desde a época em que eu estudava para o Magistério. Tínhamos uma disciplina chamada Literatura Infantil e Juvenil e, durante o curso, em nenhum momento, os professores apresentaram um livro em que houvesse personagens negros. Desde então, comecei a ficar preocupada com essa não representatividade. Quando fui cursar Letras na PUC [Pontifícia Universidade Católica, em São Paulo], me deparei com o mesmo problema: o negro pouco aparecia na literatura. Nas poucas vezes em que era identificado, tinha a imagem sempre estereotipada. Assim, resolvi que iria estudar o imaginário "do" e "sobre" o negro na literatura infanto-juvenil. 

Portal Afro - Qual é o objetivo desse trabalho? 

Andréa de Souza - Minha intenção não é apenas elaborar uma pesquisa confirmando que a literatura mantém os mesmos estereótipos que o movimento negro vem denunciando há anos, e sim procurar analisar onde está a raiz desse preconceito. 

Portal Afro - Como você efetua essa análise? 

Andréa de Souza - Para pautar meu trabalho, parti da Antropologia do Imaginário, que tem Gilbert Durand [filósofo francês que fundou em 1966 o Centro de Estudos do imaginário] como um de seus representantes. Ele baseou seus estudos no Paradigma da Complexidade, em contribuições da psicanálise, principalmente a jungiana [relativo ao psicólogo alemão Karl Gustav Jung], na Antropologia Simbólica e na Hermenêutica. Esses novos temas, que na verdade nem são não tão novos assim, vão fazer com que tenhamos uma outra leitura das relações raciais, não somente pelo lado econômico, sociológico e histórico da exclusão do negro, mas também, por outro lado, que tenhamos uma explicação simbólica disso. Sabemos que a partir dessas discussões, o negro, por ter a pele escura, está sempre associado a tudo que é ruim e negativo. Diante disso, as pessoas farão uma associação à figura do negro, projetando nele, de certa forma, todos os seus medos e sentimentos negativos. Minha intenção é discutir essa projeção do negro no imaginário. 

Portal Afro - Então o negro também assimila esse preconceito? 

Andréa de Souza - O Professor Kabengele Munanga, em uma de suas aulas, disse que o preconceito também estava na matriz de nosso inconsciente, e que precisávamos buscar novas formas para trabalhar isso, desenvolver outros olhares. 

Portal Afro - E para onde seriam desviados esses olhares? 

Andréa de Souza - Não podemos ficar restritos apenas na denúncia de que a imagem do negro é estereotipada, que ainda temos, por exemplo, a mulher negra personificada na literatura como Tia Anastácia, mas mostrar, também, o quanto, inconscientemente, os professores e os leitores dessas obras, irão acentuar esse preconceito dentro deles. Perceba que, no plano da objetividade, podemos comprovar por "a + b" que, historicamente e sociologicamente, o negro foi excluído. Mas e no plano da afetividade? Como trabalhar esse sentimento? 

Portal Afro - Qual o caminho a seguir? 

Andréa de Souza - Quando falamos nos paradigmas da complexidade, representados aqui pelo pensamento de Edgard Morrant, procuramos uma explicação além das questões econômicas e sociológicas para mostrar onde estaria a matriz desse preconceito. Para entender essa matriz, comecei a estudar Gilbert Durand, que elaborou um conceito chamado Trajeto Antropológico. 

Portal Afro - Do que ele fala? 

Andréa de Souza - Fala sobre a troca que ocorre no ser humano e na sociedade entre as intimações objetivas, ou seja, as intimações sociais e as funções subjetivas. Existe a troca, e não a hierarquia de valores (onde uma coisa vem primeiro e outra depois). A partir dessa troca, ele desenvolveu um trabalho que chama de "As Estruturas Antropológicas do Imaginário", onde temos dois regimes: o diurno e o noturno, e que dentro deles temos três estruturas. A partir daí, ele vai mostrar que "além" há uma troca, e como se dá a projeção nas questões sociais dos sentimentos afetivos. 

Portal Afro - Como é estudar a questão racial a partir desse ponto de vista? 

Andréa de Souza - Sempre temos que voltar as vistas para uma questão que o movimento negro discute muito: quando o negro ascende e ingressa na classe média ou média alta, ele é discriminado. Conclui-se então que a questão não é apenas social, pois mesmo quando ele tem dinheiro, continua sendo discriminado. Então, naturalmente retornamos à questão raça. E para isso, precisamos ampliar nossa visão de etnocentrismo. 

Portal Afro - E qual a conclusão? 

Andréa de Souza - É que, além dessa visão de uma sociedade eurocêntrica, de um pensamento que parte da visão ocidental, temos também que considerar que essa construção etnocêntrica vem do sentimento de medo do diferente, ao que não é conhecido. Se, num primeiro momento, tenho medo do que é diferente, isso será transformado em inferioridade, em desigualdade, em exclusão. 

Portal Afro - Como você aplica esse conhecimento em seu trabalho como orientadora educacional do Instituo Padre Batista? 

Andréa de Souza - Procurei criar uma oficina que, antes de trabalhar diretamente com a imagem do negro na literatura, sensibilizasse os educadores quanto a essa questão. 

Portal Afro - Como você faz isso? 

Andréa de Souza - Em primeiro lugar, voltamos ao histórico de leitura desses educadores e levantamos alguns dados. É importante sabermos o que ele leu, quais os personagens que marcaram esses anos e os heróis que ficaram em sua mente. Assim, eles mesmos reconhecerão que dentre esses personagens e heróis que marcaram sua infância, dificilmente serão encontrados negros, com exceção de Zumbi dos Palmares, que é sempre o mais lembrado. 

Portal Afro - Qual a importância dessa reflexão? 

Andréa de Souza - Pretendemos sensibilizar os educadores, principalmente os brancos, para que percebam como foi importante poderem contar com o referencial desses heróis brancos na infância. Por outro lado, mostrar que se estes mesmos educadores não se preocuparem em trabalhar a imagem de personagens e heróis negros para seus alunos, tanto brancos quanto negros, para que essa imagem seja incorporada ao imaginário dessas crianças, de forma natural, fazendo com que entendam que o negro também é um ser humano como os outros, se esses mestres não incorporarem essa prática educacional, dificilmente conseguiremos mudar alguns problemas decorrentes de nossa situação enquanto negros. 

Portal Afro - Quais problemas? 

Andréa de Souza - A baixa auto-estima e o fato dos negros perseguirem o padrão branco de beleza, por exemplo. 

Portal Afro - E como é aplicado esse método? 

Andréa de Souza - Num primeiro momento, trabalhamos com músicas relacionadas com a cultura negra, depois passamos para poesias, como as dos Cadernos Negros, publicadas pelo Quilombhoje. Assim, organizamos dinâmicas onde reconstruímos e montamos poesias, discutindo o resultado final daquele texto, pois eles não tem o texto original em mãos, eles irão montá-lo. A partir daí vamos discutir como organizar esse texto, sobre o que ele fala e qual a visão do negro por ele apresentada. Fazemos toda uma exposição sobre isso. Num outro momento, eu apresento um trecho, pois nunca é possível mostrar toda a fita, daquele documentário chamado "Olhos Azuis". 

Portal Afro - Qual a contribuição desse filme? 

Andréa de Souza - Ele serve justamente para mostrar como é que se constrói a discriminação, como é que o professor, estando numa posição de poder, pode manter, criar ou ainda, de certa forma, discrimnar alguém. Esse vídeo é excelente para sensibilizar esses educadores. 

Portal Afro - E qual a reação deles? 

Andréa de Souza - Alguns se sentem agredidos. Consideram o vídeo muito agressivo... 

Portal Afro - E depois da discussão sobre o vídeo... 

Andréa de Souza - Começamos a trabalhar alguns conceitos básicos, como o etnocentrismo, o preconceito e a discriminação, para que eles mesmos percebam se têm ou não essa prática etnocêntrica na sala de aula. 

Portal Afro - E qual é a conclusão mais comum? 

Andréa de Souza - Geralmente eles percebem que têm. Muitos me falam que não sabem como fazer isso de forma diferente. Estamos buscando caminhos. 

Portal Afro - Você tem notícia de experiências realizadas nesse sentido? 

Andréa de Souza - Acredito que o meio acadêmico e intelectual não dá a devida atenção a algumas experiências. Na Bahia, por exemplo, uma escola desenvolveu todo um programa baseado na cultura afro-brasileira, também tenho conhecimento de uma boa experiência em Florianópolis [capital do estado de Santa Catarina, no Sul]. São iniciativas desenvolvidas há um bom tempo e que tem gerado bons resultado, mas por não estarem localizadas nos grandes centros, não são divulgadas de forma adequada. Isto nos dá a falsa impressão de que nada tem sido feito, pois, na maioria das vezes, e infelizmente tenho que dizer isso, os representantes acadêmicos da educação não estão buscando essas novas experiências, seja para divulgá-las ou para usá-las como referência. 

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