quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A PADILLA: HISTÓRIA, MITO E TEATRO
Armindo Bião
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Universidade Federal da Bahia – UFBA
Etnocenologia, Doña María de Padilla, Maria Padilha.
A pesquisa constrói um corpus histórico, antropológico, poético e dramatúrgico sobre uma personagem histórica espanhola e uma entidade da umbanda brasileira.

A personagem histórica
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Mari Díaz nasceu numa importante família de Castela, provavelmente na região de Palência. Por volta dos 20 anos, em maio de 1352, ficou conhecida como Doña María de Padilla, ao encontrar o jovem Rei Don Pedro (com 18 anos incompletos), de quem foi amante até a morte, por causas naturais, em julho de 1361. Tiveram um filho (falecido criança) e três filhas (duas as quais se casariam com filhos do Rei Eduardo III, da Inglaterra), todos legitimados infantes reais posteriormente (ROS, 2003: 163).

D. María foi, segundo todos os que se dedicaram à matéria, a favorita do rei, que teve várias mulheres e cinco filhos reconhecidos (nenhum dos quais com a única incontestavelmente tida em vida como Rainha de Castela, Branca de Bourbon). De fato, D. Pedro só fez de D.María Rainha de Castela em abril de 1362 (nove meses após sua morte), ao declarar, com a aquiescência das autoridades eclesiásticas de Sevilha, terem se casado em segredo, mesmo já tendo se casado duas vezes, formal e publicamente: com a nobre francesa Branca de Bourbon, em junho de 1353; e com a portuguesa Joana de Castro (meia-irmã da “linda” Inês, que também, como D. María, fora rainha depois de morta), em 1354 (AYALA, 1991: 100).
D. Pedro foi o único filho legítimo dos primos-irmãos (primos carnais pelos lados materno e paterno) o rei Afonso XI, de Castela, e a princesa portuguesa Maria ("A fermosíssima Maria" dos Lusíadas de Camões), irmã do também rei Pedro I, o Cruel (o português Pedro de Inês), tio de seu homônimo espanhol. Além de ter ordenado a morte de sua legítima esposa, a rainha desprezada Branca, em 1361, D. Pedro foi responsável por outras mortes,entre as quais a da amante de seu pai, Leonor de Gusmão. Com dois dos filhos ilegítimos de D. Leonor com seu ai, D. Pedro se digladiaria até a morte (em 1369), tendo matado um, Don Fadrique, em 1358,e sido morto por outro, Don Henrique II, de Trastâmara (1333?/ 1379), que lhe sucederia (ROS, 2003: 166). Talvez não tão curiosamente assim, dado o encadeamento de todo tipo de peripécia e dos muitos casamentos endógenos nesse contexto, o filho deste, o Rei Henrique III, se casaria com Doña Catalina, neta de D. Pedro e de D. María e filha de Doña Constanza (filha deles) e do Duque de Lancaster (filho do Rei Eduardo III, da Inglaterra), selando, assim, a paz familiar, entre os descendentes dos meio-irmãos Pedro e Henrique, ambos assassinos de meio-irmãos e ambos também tataravôs de Isabel, a Católica (1451/ 1504), neta de seus netos Catalina e Henrique III (AUGRAS, 2001, p. 305).
A personagem mítica
O romancero viejo (ROIG, 2007) espanhol, do tipo considerado por Pidal (1968, I: 301) “romances noticiosos” ou, por Díaz-Mas, “romances históricos” (2001: 97 e s.; 392), contém todo um Ciclo de Don Pedro el Cruel (AUGRAS, 2001: 305 e s.), que prosperou em paralelo ao desenvolvimento do país a partir do reinado de Henrique II, o inaugurador da dinastia dos Trastâmara. Nesse conjunto de histórias cantadas com versos de sete sílabas, o rei derrotado, Pedro, é sempre descrito como o Cruel e María de Padilla como uma adúltera sedutora, dominadora e intrigante, pactuando com o mal. No romanceiro, o mal é a feitiçaria, que seria praticada, sobretudo, pelos judeus, relativamente bem tolerados anteriormente e que seriam perseguidos por Henrique II e seus descendentes, até Isabel, a Católica, que os expulsaria da Espanha. Esses romances apareceram já no século XIV, mas cresceram em número e imaginação e se divulgaram durantes os séculos XV, XVI e XVII, inclusive por Portugal (sob o domínio espanhol de 1580 a 1640).
A Inquisição em Portugal e na Espanha deixou registradas invocações de “feiticeiras” a “Maria Padilha com toda sua quadrilha” e, também, à passagem de algumas dessas mulheres “perigosas” pelo Brasil, entres os séculos XVII e XVIII (MELLO E SOUZA, 1986: 168; AUGRAS, 2001: 308 e s.; MEYER, 1993). Talvez aí resida a eventual relação histórica entre as duas rsonagens, a da tradição histórica e a do imaginário religioso, que prosperaria em nosso país, no âmbito dos cultos afro-brasileiros.
A literatura romântica francesa e a ópera popular, que a partir dela se desenvolveu,divulgariam, por todo o mundo, as belas “feiticeiras” ciganas andaluzas, tendo Prosper Mérimée, o autor de Carmem, não apenas incluído uma nota em sua novela a propósito de Marie Padilla (1965: 163; 1990: 92), como também se dedicado a escrever uma biografia de D. Pedro (1961). Aliás, foi a partir daí que Roberto Motta (1990: 55; 1995: 182; 1998: 114), pela primeira vez, relacionou a personagem histórica espanhola à entidade religiosa brasileira.
O teatro espanhol (desde Lope de Vega) e também o francês, sobretudo o do período romântico, faria de D. Pedro e D.María protagonista e a antagonista (e vice versa),enfatizando sempre a crueldade do homem e a doçura da mulher. Esse antagonismo deve ter sido inspirado,principalmente, nas Crónicas de Ayala, de acesso mais restrito, contradizendo o muito popular romanceiro velho e, também, de modo radical, a concepção brasileira – também muito popular - das diabólicas marias padilhas - e até mesmo a circunstância em que Carmen a invocava na novela de Mérimée. Bem revelador do caráter bondoso atribuído por Ayala e os dramaturgos românticos a D. María de Padilla é o título de sua única biografia, escrita pelo especialista na história de Sevilha Carlos Ros: Doña María de Padilla: el ángel bueno de Pedro el Cruel (2003).
A personagem teatral

O caráter bondoso, de uma vítima do destino e dos desatinos do Rei D. Pedro, de D. María, parece de modo evidente no repertório do teatro, como, por exemplo, no melodrama em três atos Maria Padilla, impresso em Lisboa em 1845, pela Tipografia de P. A. Borges, numa edição bilíngüe italiana (em versos, de Caetano Rossi) e portuguesa (em prosa), “para se representar no R. T. São Carlos”, como libreto da ópera de Caetano Donizetti.
Dividido em três atos, esse melodrama apresenta inicialmente Maria e uma sua irmã chamada Inês, na casa de seu pai, celebrando o casamento dessa última e comentando o desejo de Maria de ser rainha, ainda que amando e sendo correspondida nesse amor por um plebeu, na verdade o futuro Rei D. Pedro disfarçado. Ainda no primeiro ato, acontece o rapto de Maria pelo falso plebeu e sua reação indignada, que ameaça matar-se, mas que enfim se entrega e concorda que fique em segredo esse “matrimônio”.
O segundo ato se passa no Alcazar de Sevilha durante uma festa oferecida por D. Maria ao já então proclamado Rei. O pai de Maria declara seu desejo de vingança por ter sido desonrado com o rapto de sua filha. Inês informa a Maria que seu marido matou um amigo do rei e Maria lhe diz que o rei o perdoou e que ela irá, em seguida, pedir perdão a seu pai, enquanto este é preso ao atacar o rei. No clímax da festa e da descoberta do martírio do pai, Maria se amaldiçoa e ao rei.
No último ato, num quarto, ao lado do pai moribundo, que não a reconhece, Maria lhe mostra a declaração escrita de seu casamento com o rei, mas seu pai a rasga. Fora, louva-se Branca, a jovem rainha, que então se casa publicamente, por motivos de estado, com D. Pedro. Maria leva seu pai até a cena do casamento e interpela o rei, que declara lhe preferir à nova esposa. Maria morre de emoção e o pai enfim a reconhece.
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.Conclusão
O perfil de D. Maria traçado nesse melodrama é exemplar da caracterização da personagem teatral que nos interessa e que contraria o romanceiro velho espanhol. Relativamente fiel às crônicas de Ayala, esse perfil é também antípoda da caracterização da personagem mítica da umbanda brasileira, possivelmente herdeira do imaginário ibérico enraizado nos romances tradicionais e registrado pelos processos inquisitoriais.
O fato é que as artes do espetáculo, do romanceiro, do teatro, dos ritos religiosos e dos autos da fé, têm sido boa cena para a história e o mito de Doña Maria de Padilla a Maria Padilha.
Bibliografia
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Antropología Americana, n. 31. Madrid: [s. n.], p. 293-319, 2001.AYALA, Pero López. Crónicas. Barcelona: Planeta, 1991.
DÍAZ-MAS, Paloma (Ed.). Romancero. Barcelona: 2001.
Maria Padilla: Melodrama em 3 actos para se representar no R. T. São Carlos. Lisboa:
Typographia de P. A. Borges, 1845, 79 p.
MÉRIMÉE, Prosper. Histoire de Don Pèdre Ier, roi de Castille. Paris: Didier, 1961.
MÉRIMÉE, Prosper. Carmen et treize autres nouvelles. Paris: Gallimard, 1965.
MÉRIMÉE, Prosper. Carmen: texte integral; les clés de l’oeuvre. Paris: Pocket, 1990 ;
1999.
MEYER, Marlyse. Maria Padilha e toda sua quadrilha: de amante um rei de Castela
a Pomba-Gira de Umbanda. São Paulo: Duas Cidades, 1993.
MOTTA, Roberto. O Sexo e o Candomblé: Repressão e Simbolização. In: PITTA,
Danielle Perin Rocha; MELLO, Rita Maria Costa (Org.). Vertentes do Imaginário. Recife:
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MOTTA, Roberto. Transe du corps et transe de la parole dans les religions syncrétiques
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MOTTA, Roberto. Transe, Possessão e Êxtase nos Cultos Afro-brasileiros do Recife.
In: CONSORTE, Josildeth Gomes; COSTA, Márcia Regina da (Org.). Religião, política,
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PIDAL. Ramón Menéndez. Romancero hispánico (hispano-portugués, americano y
sefardí): teoría y historia. Madrid: Espasa-Calpe, 1968.
ROIG, Mercedes Díaz (Ed.). El romancero viejo. 23ª. ed. Madrid: Cátedra, 2007
ROS, Carlos. Doña María de Padilla: el ángel bueno de Pedro el Cruel. Sevilla:
Castillejo, 2003.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade
popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
VILLAESPESA, Francisco. Doña Maria de Padilla. Madrid: Renacimiento, 1913.

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