quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Por que os heróis nunca são negros?

Por que os heróis nunca são negros?


por Roberta Bencini
http://novaescola.abril.com.br

Nos contos de fadas, o papel de protagonista pertence aos brancos. Veja como fugir desse estereótipo. 


Montagem sobre ilustração de A Bela
Adormecida, com príncipe e donzela negros:
imagem inexistente nas histórias infantis

O povo negro é discriminado em todos os cantos do planeta onde os brancos são maioria. E a sua sala de aula, professor, será território neutro? Por mais que você se preocupe em tratar todos da mesma maneira, os negros continuam sendo discriminados. Quer ver como? Pense nos livros que a turma lê. Eles mostram famílias negras de classe média, felizes e bem-sucedidas? Têm príncipes, reis e rainhas que não sejam brancos? Você não acha isso um problema? Então imagine o que significa ser despertado para o prazer da leitura sem ver sua raça representada de forma positiva nas páginas dos livros. 

"Lendas, contos da carochinha e mitologias ajudam as crianças a construir sua identidade. Num processo de transferência, os pequenos se colocam no lugar dos heróis e vivenciam as sensações dos personagens", explica Taicy de Ávila Figueiredo, pedagoga e professora de Educação Infantil em Brasília. Sentimento de inferioridade e auto-rejeição são as conseqüências mais comuns na auto-estima de quem não se reconhece nas histórias contadas na escola. "Todos querem ser aceitos por seu grupo, pela sociedade. Muitos alunos passam a se enxergar como brancos", explica Ana Célia Silva, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Você deve estar se perguntando como fugir dessa questão, já que as histórias consagradas do mundo de faz-de-conta são européias. A sugestão é entrar no universo de lendas e histórias da África, do Oriente, dos índios... Veja como a professora Maria Cecília Pinto Silva, da Escola Municipal de Educação Fundamental General Esperidião Rosas, em São Paulo, conseguiu plantar uma semente contra o racismo em uma atividade interdisciplinar para as turmas da 4a série. O projeto ganhou o prêmio Educar para a Igualdade Racial, do Centro de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert). 

PLURALIDADE CULTURAL 

Tema: Preconceito racial

Objetivo: Mostrar que existe um racismo velado no Brasil e que a imagem dos negros nos livros ainda é inferiorizada perante o branco. Aumentar a auto-estima dos alunos afro-descendentes, despertar a turma para a diversidade da raça humana e promover o respeito pelas diversas etnias. 

Como chegar lá: Faça um levantamento dos heróis e heroínas conhecidos pelo grupo. Provavelmente os de cor branca serão maioria. Em seguida apresente personagens negras de livros e filmes (como o desenho animado Kiriku e a Feiticeira, disponível em fita VHS) e pessoas notórias que sejam representadas de maneira positiva. Discuta os motivos dessa diferença, peça pesquisas em jornais e revistas que comprovem a discriminação. 

Dica: Não chegue com discurso pronto sobre o racismo. Deixe os alunos concluírem que o preconceito e a discriminação existem, sim, no Brasil e que precisam ser combatidos. Ao falar da cultura africana e dos rituais, prepare-se para enfrentar o preconceito religioso. 

EXPERIÊNCIA PRÁTICA 

Diagnóstico/Objetivos - Após presenciar diversas atitudes racistas, a professora elaborou um projeto para despertar o respeito às diferenças. Pediu à classe que desenhasse os heróis preferidos, já prevendo o resultado. A maioria citou personagens brancas. Ela aproveitou os dados e ensinou, nas aulas de Matemática, como elaborar gráficos. Veja o resultado: 94% de personagens brancas, 4% de orientais e 2% de negras. 

Problematização - Maria Cecília apresentou o herói Kiriku, do filme Kiriku e a Feiticeira. O desenho animado se passa na África e todas as personagens são negras. A turma assistiu ao filme, reescreveu a história e a sinopse e fez resenhas. Em seguida a professora pediu um exercício de comparação com os contos de fadas tradicionais e o levantamento das características desse gênero literário. Para começar, lançou a pergunta: por que não vemos personagens negras em outras histórias? Os alunos conseguiram se lembrar de algumas, como o Negrinho do Pastoreio, o Zumbi e Tia Nastácia. Qual a diferença entre eles e Kiriku? "Ele é um herói, professora", responderam. Bingo! A próxima atividade foi de leitura de livros cujas personagens principais são negras, como Luana, de Aroldo Macedo. Em seguida as crianças pesquisaram em jornais e revistas reportagens sobre racismo, enquanto Maria Cecília mostrava fotos e histórias de grandes ícones brasileiros negros, como o professor Milton Santos. 

Desdobramentos - Em Ciências, foram estudadas diversas versões para a criação do mundo e a professora apresentou lendas africanas e indígenas. Nesse momento, um aluno muçulmano trouxe sua experiência e enriqueceu a discussão sobre pluralidade cultural (leia mais no quadro abaixo). 

TOLERÂNCIA RELIGIOSA CONTEMPLA O PROJETO 

"Não quero desenhar nem ouvir falar em orixás", reclamaram alguns evangélicos na aula de Ciências de Maria Cecília. O preconceito religioso é outro desafio a ser enfrentado na escola. Algumas crianças não queriam participar dessa etapa do projeto. Durante essa difícil tarefa, o aluno Kaled Abidu El Carim Abou Nassif, libanês e muçulmano, pediu espaço para contar a versão da religião de Maomé para a criaçãodo mundo. Como a cultura islâmica está em evidência, os colegas estavam cheios de perguntas. Depois dos orixás, anjos e Alá, os alunos conheceram histórias de Tupã e tiveram contato com as lendas indígenas. "Estão vendo? Não somos e não precisamos ser todos iguais", disse a professora, explicando que conhecer é muito diferente de convencer". 

ENTREVISTA

Andréia Lisboa de Sousa é pesquisadora das relações raciais na literatura infanto-juvenil na Universidade de São Paulo (USP). Negra, ela fala com conhecimento de causa sobre a existência de racismo no Brasil. 

NE: É possível destruir o preconceito na escola? 

Andréia: É uma tarefa difícil, mas que deve ser cumprida pela escola. Desde a Educação Infantil, os professores devem estar atentos nas diferenças na sala de aula. Não é mais possível que se apresente uma leitura etnocêntrica do mundo. Antes disso, porém, o professor precisa destruir seu próprio preconceito. 

NE: A senhora está afirmando que seus colegas são preconceituosos? 

Andréia: Sim, é preciso não ter preconceito do preconceito, já dizia o sociólogo Florestan Fernandes. A partir do momento em que admitimos nossas fraquezas fica mais fácil encararmos o problema e encontrarmos uma solução, um projeto pedagógico eficiente. 

"A personagem branca nunca é identificada pela cor. A preta, sim" 

NE: Como executar um bom projeto? 

Andréia: Escolha bem os livros didáticos e paradidáticos para que os alunos tenham acesso à Cinderela, personagem da tradição européia, mas também à Luana, heroína negra criada pelo escritor Aroldo Macedo, por exemplo. E a outras indígenas, japonesas e judias. Não basta que um livro contenha personagens negras. É preciso atenção nas imagens. Não podemos admitir figuras com traços grosseiros. Encontrei um livro em que as personagens negras pareciam porcos. Veja se não há imagens que colaboram com a representação de inferioridade, como negros sendo maltratados, mesmo que a temática do livro seja a escravidão. Evite personagens que sejam vítimas ou que ocupem posições subalternas. Mostre uma imagem positiva da raça para que os alunos sintam orgulho de si mesmos. 

NE: O professor pode chamar um aluno de preto? 

Andréia: Pode, mas depende da intencionalidade. Veja a diferença nessas duas afirmações: "Que preto lindo!" e "Só podia ser esse preto bagunceiro!" Para que não haja confusão, eu gosto de usar negro, mas há outras nominações, como afro-brasileiro e afro-descendente. 

QUER SABER MAIS: 

EMEF Mal. Espiridião Rosas, Av. Gal. McArthur, 1304, CEP 05338-001, São Paulo, SP, tel. (0_ _11) 3768-2898 

Andréia Lisboa de Sousa, tel. (0 _ _11) 9880-1521, e-mail: sousalis@usp.br 

Filmografia Kiriku e a Feiticeira, Imovision Distribuidora (disponível apenas em locadoras) 

Bibliografia Superando o Racismo na Escola, Kabengele Munanga (organizador), 202 págs., MEC (disponível apenas em bibliotecas) 

Luana, A Menina que Viu o Brasil Neném, Aroldo Macedo, 48 págs., FTD, tel. (0_ _11) 3611-3055, 9,70 reais 

O Amigo do Rei, Ruth Rocha, 32 págs., Ed. Ática, tel. 0800-115152, 10,90 reais 

Tanto, Tanto!, Trish Cooke, 48 págs., Ed. Ática, 24,90 reais 

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